Fernanda Takai lança disco, alfineta terraplanistas e critica Bolsonaro

*por Raphael Vidigal

“O passado é o presente, não é não?! É igualmente o futuro. Todos nós tentamos evadir-nos dele, mas a Vida não o permite.” Eugene O’Neill

Após ser condenado às masmorras pelo Santo Ofício da Igreja Católica, em 1633, graças à insistência em afirmar que a Terra girava em torno do Sol, e não o contrário, Galileu Galilei (1564-1642) teria murmurado, bem baixinho: “E, no entanto, ela se move”. As lutas inglórias do cientista florentino inspiraram a peça “A Vida de Galileu”, encenada pela primeira vez em 1943, de autoria do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), que, segundo ele, a escreveu “para servir de exemplo e conselho aos sábios alemães tentados a abdicar de seu saber nas mãos dos chefes nazistas”. Antes dessa prosopopeia, no século VI a.C., o matemático Pitágoras (570-495 a.C.) já havia compreendido a natureza esférica do planeta, tema que a cantora Fernanda Takai, 48, se vê impelida a resgatar em pleno 2020.

“Terra Plana” abre o mais novo disco de inéditas da artista, o primeiro desde “Na Medida do Impossível” (2014) – nesse ínterim, ela homenageou Tom Jobim em “O Tom da Takai” (2018) e gravou “Música de Brinquedo 2” com o Pato Fu. A faixa ganhou um videoclipe com imagens espaciais captadas pela Nasa (agência espacial norte-americana). No YouTube, os comentários explodiram numa frequência comparável à do Big Bang (preservando-se a ironia). “Os terraplanistas (termo que precisou ser reinventado) estão dando a maior audiência para o clipe! Eles ficam lá brigando entre si e monetizando a música pra gente”, diverte-se Fernanda. “Colocamos em discussão essa ré que temos dado, principalmente no Brasil, com as pessoas questionando a ciência e, mesmo politicamente falando, estamos nas mãos de irresponsáveis”, completa.

Suave. Não foi a primeira vez que ela se viu envolvida em ataques virtuais. No ano passado, após participar do Festival Lula Livre, Fernanda foi às redes para rebater, educadamente, seus detratores. A cada “parando de seguir”, ela respondia “viva!”. “Tinha me preparado espiritualmente para a reação, via muita gente sendo atacada e eu era atingida de rebarba. Gravei um áudio para a campanha do (Fernando) Haddad e da Manuela (D’Ávila). Apoiei a Dilma. A virulência e a capacidade de mobilização deles para tentar derrubar alguém é alta. Usei todo o zen que havia acumulado em minha vida para não ser aquilo que eles são. Temos que ser a antítese, com educação, elegância e paciência, não podemos perder a cabeça e nos equiparar ao nosso contrário”, pondera.

Fernanda define como “tapa de luvas” o caminho escolhido para se opor às constantes afrontas ao conhecimento que vêm do outro lado. “Com a violência das redes sociais e no convívio pessoal ao se discutir ideias é tão difícil ser educado, porque é tanto absurdo. ‘Terra Plana’ propõe esse debate de forma suave. Até os terraplanistas podem cantá-la e se colocar em dúvida sobre o que estão falando”, garante ela, que pinçou um verso da canção para batizar o álbum: “Será Que Você Vai Acreditar?”. “Escolher uma pergunta para título é elevar a incerteza ao seu grau máximo. Foi acreditando em um monte de absurdos que o Brasil chegou aonde estamos hoje, com um presidente irresponsável e uma coleção de ministros incompetentes, além de estarmos sem ministros em cargos-chave”, desabafa Fernanda, que emenda mais questionamentos.

Lamento. “Será que as pessoas que nos deixaram nessa situação vão continuar acreditando nas mentiras desse mundo surreal que Brasília vive?”, indaga. As pastas de Saúde e Educação são ocupadas, atualmente, por ministros interinos. Paralelamente a letra de John Ulhoa reflete sobre a mudança de geração. Ele e Fernanda têm uma filha, Nina, de 16 anos. “Vivemos um momento de insegurança quanto à vida das pessoas, especialmente aquelas que estão desprotegidas, sem casa nem comida, que não têm nem como lavar as mãos. É um desabafo sobre esse cenário limite, onde as pessoas estão considerando que os velhos já viveram demais, vão ao bar e voltam para casa, colocando os próprios avós em risco. Transbordamos esse caldo de desespero diante de tanto egoísmo e crueldade. Até agora, o mundo foi muito mal cuidado e não sabemos como vai ser daqui para a frente”, diz.

“Corações Vazios”, outra de Ulhoa, fala sobre “a vez da santa estupidez”. Até aqui, a pandemia do novo coronavírus já matou quase 70 mil brasileiros, alçando a nação ao topo de um triste ranking. Diagnosticado com Covid-19 no início da semana, o presidente Jair Bolsonaro chegou a definir a doença como “gripezinha”, e, indagado a respeito dos óbitos, disse que não era coveiro. Fernanda avalia que o seu trabalho traz no nome “quase um lamento”. O disco começou a ser produzido logo depois do Carnaval. Com a agenda de shows cancelada, ela e John se enfurnaram no estúdio caseiro, em BH, e retomaram o modus operandi da origem do Pato Fu, com programações eletrônicas e o marido dando conta de todos os instrumentos. O período de gestação do rebento foi de três meses.

Alento. “A solidão e o tempo dilatado nos permitiu a tentativa e erro, e várias experimentações. As pessoas estão recorrendo muito à arte para passar os dias e tem sido terapêutico tanto para quem cria como para quem recebe. É uma via de mão-dupla”, destaca. A cantora acompanhava as notícias da pandemia em lugares como China e Itália, e acreditava que o Brasil poderia aprender algo com a experiência dos outros países. “Mas não aprendemos”, verifica. A violência da chegada do vírus em terras tupiniquins a assustou, e, por uma conjunção dos astros, uma canção do repertório tornou-se ainda mais atual. “Não Esqueça” foi composta por Nico Nicolaiewsky (1957-2014) em 2012, mas nunca gravada por ele, que morreu de leucemia em 2014.

Há um registro do autor tocando a música no YouTube, em vídeo feito para um documentário. As famílias de Fernanda e Nicolaiewsky eram amigas, mote da composição. “Eu te digo minha filha/ Não esqueça de sempre sorrir/ Não esqueça de ligar pra mim/ Se por acaso conseguir”, sublinha a abertura. “As crianças crescem, mas sempre queremos que elas nos liguem, fiquem em segurança. É tão bonito e singelo isso”, elogia a intérprete. “Não esqueça que é tudo ilusão/ Não esqueça de lavar as mãos”, afirma outro trecho. “É uma coincidência incrível, lavar as mãos hoje é questão de vida ou morte”, observa. Outra regravação veio da memória afetiva da entrevistada. “Não Creio em Mais Nada”, de Totó, levou Paulo Sérgio (1944-1980) ao auge do sucesso em 1970.

Lembrança. Fernanda nasceu em 1971, mas se lembra de ouvir a canção ainda criança, numa época em que vivia com o ouvido colado em seu radinho de pilha. “Não tinha projeto infantil, a gente ouvia a música de adulto que tocava no rádio”, salienta. A mania de revisitar hits que habitam a sua “cabeça de ouvinte e fã da música popular brasileira” rendeu versões para clássicos de Genival Lacerda (“Severina Xique-Xique”), Benito Di Paula (“Como Dizia o Mestre”), Evaldo Braga (“Esconda o Prato Num Sorriso”) e Odair José (“Uma Lágrima”) em investidas anteriores a esse universo taxado de brega por parte da crítica especializada. No esplendor da fama, Paulo Sérgio, que pertenceu à Jovem Guarda, morreu vítima de um derrame cerebral, aos 36 anos.

“É bom para quem têm saudade e, para quem não conhece, descobrir a obra desse cantor que foi tão popular”, sustenta Fernanda, que se espanta, positivamente, com o fato de “Não Creio em Mais Nada” não ter sido censurada pela ditadura militar, apesar da referência profunda àquele período sinistro. A homenagem ao ídolo Michael Jackson (1958-2009), de quem ela já havia cantado “Ben”, acontece com “One Day In Your Life” (Sam Brown III e Renée Armand), da fase em que o prodígio mirim acabava de deixar o Jackson 5 para partir em carreira solo. “Ele cantou poucas vezes essa música ao vivo. Eu já queria aprender a tocar desde muito nova, quando nem sabia falar inglês ainda”, admite. No mesmo idioma, ela dá voz à balada “Love Is a Losing Game”, de Amy Winehouse (1983-2011).

Amor. A morte precoce da britânica, aos 27 anos, por overdose de bebidas alcóolicas, adiou o reencontro de Fernanda com suas canções. Ela costumava interpretar “Rehab” nos shows, o que “ficou sem graça” com a partida da estrela. Embora escutasse “Love Is a Losing Game” em looping, o pudor a impedia de registrá-la. A simplicidade dos poucos acordes a cativavam desde sempre. Assim como a letra “sobre a descrença no amor”. “Tudo é questão de sorte ou azar, não adianta o esforço, porque não temos controle”, analisa Fernanda. Com um violão de nylon, esse “discurso atual”, adquiriu “contornos de bossa nova que o trazem para o Brasil”, opina. De próprio punho, a vocalista dá seu testemunho acerca do mais universal dos sentimentos em “O Amor em Tempos de Cólera”, parceria com Virginie Boutaud, ex-integrante do Metrô, banda de new wave oitentista.

Recentemente, Virginie participou do último álbum do Ira! e teve o sucesso “Johnny Love” relançado por Leo Jaime, que completou 60 anos em abril. Casada com um diplomata, ela ficou viúva há cerca de três anos e decidiu retomar o ofício. Depois de ver Fernanda dando voz a músicas do Metrô no programa “Altas Horas”, de Serginho Groisman na Globo, elas entraram em contato por meio do Instagram. De Toulouse, onde vive, na França, Virginie gravou a sua parte da canção. Os timbres parecidos se complementaram com o arranjo bucólico de John Ulhoa, com direito a barulhinhos de chuva. “É uma música necessária para os dias de hoje, precisamos dar afeto, buscar carinho e acolhimento. Vivemos numa era em que as pessoas só querem se atacar e ninguém faz questão de amor. Quando damos amor, ele volta para a gente”, diz.

Oriente. Durante um mês, a Fundação Clóvis Salgado colocou no ar, gratuitamente, a mostra “Clássicos do Cinema Japonês”. Descendente de avós paternos naturais da Terra do Sol Nascente, Fernanda assistiu aos dez longas, e se impressionou com a modernidade de “Carta de Amor” (1953), dirigido por uma mulher pioneira, Kinuyo Tanaka. John a acompanhou em algumas sessões. “É incrível a maneira, o tempo de se contar a história”, enaltece. Nascida em Serra do Navio, no interior do Amapá, mas criada em Belo Horizonte, ela tem se aproximado da ascendência oriental constantemente. Ao todo, realizou sete turnês pelo Japão, e aproveitou a quarentena para estudar o idioma de forma online. Logo, a presença de Maki Nomiya, do extinto duo Pizzicato Five, na faixa “Love Song” não é por acaso.

Nos anos 1990, elas toparam pela primeira vez nos corredores da MTV Brasil e deram início a uma amizade duradoura. A música versa sobre a impossibilidade da distância, e mesmo dos fuso-horários, prevalecerem sobre o amor, e traça essa rota entre Brasil e Japão, reduzida pelo poder da arte e do que o ser humano carrega de sublime no coração. “É uma canção de amor/ Mais forte que a distância e tanto mar”. Quando finalmente chegar ao mercado em formato de CD e vinil, o novo álbum trará na capa uma imagem produzida pelo artista plástico Renato Larini, cujo método consiste na “colagem de partes diferentes que encontram outro significado”, de acordo com a anfitriã. Ela define o trabalho de Larini como “dual”. “Tem um pouco de melancolia e, ao mesmo tempo, algum otimismo necessário para seguir. É uma arte que impacta, espanta, permite leituras diferentes. Você pode se afeiçoar ou ter medo”, arremata.

Fotos: Bruno Senna; e Fabiana Figueiredo/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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