Aos 60 anos, Leo Jaime diz: ‘O mundo está mais cínico e pragmático’

“um jeito só de viver,
mas nesse jeito a variedade,
a multiplicidade toda
que há dentro de cada um.” Carlos Drummond de Andrade

Leo Jaime tinha planejado uma festa para celebrar os seus 60 anos, completados nesta quinta (23), mas foi obrigado a adiar a farra, devido à pandemia do novo coronavírus. “Agora vou fazer 60 só no ano que vem”, brinca. “Seria uma festa para amigos, com banda, música, karaokê, dança, uma curtição”. “A expectativa para esse aniversário, em especial, tem sido decepcionante, porque é uma efeméride para mim e estamos todos isolados”, admite ele, que se orgulha de possuir três DRTs (documento que atesta a capacidade profissional): músico, ator e jornalista.

O presente ficou para os fãs, agraciados hoje com uma nova versão de “Johnny Love” (de Alec Haiat e Yann Laouenan), disponibilizada nas plataformas digitais. Jaime a cantou pela primeira vez em um dueto com a banda Metrô, que a lançou no disco “Olhar” (1985). “Resolvi fazer o meu arranjo para essa música deles que é tão bonita. De vez em quando, lanço singles, de forma independente, na internet”, diz. “É, Eu Sei”, “Uniformes”, “Romance Ideal”, “A Fórmula do Amor II”, “Acredite em Mim” e “Charme do Mundo” são exemplos da fala do cantor.

Em 2019, ele subiu ao palco para uma experiência inédita ao lado da Orquestra Opus, em Belo Horizonte, quando seus clássicos ganharam roupagem erudita, e se entusiasmou com o resultado. “O maestro registrou o concerto e me mandou para ouvir. Pode ser algo interessante e surpreendente para lançar”, especula.

Hits. Protagonista de filmes feitos sob medida para sua personagem, como “Rock Estrela” (1985) e “As Sete Vampiras” (1986), Jaime é autor de baladas que embalaram pistas e corações na década de 80 e foram reincorporados ao repertório de “Dance Comigo”, seu mais recente espetáculo, como “A Fórmula do Amor” (com Leoni), “Nada Mudou”, “Conquistador Barato” e “A Vida Não Presta” (com Selvagem Big Abreu e Leandro Verdeal), além de regravações que se tornaram marcantes em sua voz, caso de “Gatinha Manhosa” (de Roberto e Erasmo).

Já “Rock da Cachorra” passou a vida associada a Eduardo Dussek, embora tenha sido composta por Jaime, que voltou a interpretá-la no novo show. Ele também foi craque em recriar hits internacionais para o idioma tupiniquim. Algumas das que fizeram mais sucesso foram “Solange” (1985) e “Calúnias” (1983), famosa como “Telma, Eu Não Sou Gay” na voz de Ney Matogrosso. Entre outras peripécias, o entrevistado integrou o grupo de rockabilly João Penca e Seus Miquinhos Amestrados e indicou Cazuza (1958-1990) para o posto de vocalista da banda Barão Vermelho.

Polivalente. Conhecido da nova geração principalmente pelos papeis em “Malhação”, da qual participou em três temporadas (de 2012 a 2014), e “Novo Mundo” (2017), quando deu vida a um glutão Rei João VI, ou ainda pelo programa “Papo de Segunda”, que substituiu a edição masculina do “Saia Justa”, semanário que contava com Jaime desde 2011, o artista goiano tem, de certa maneira, retornado às origens que o catapultaram ao estrelato, depois de declarar, numa de suas aparições na TV, que “a fonte de inspiração musical secou”, há cerca de três anos.

Na entrevista abaixo, Leo Jaime, que se mudou para o Rio de Janeiro no final da década de 70, onde mora até hoje, detalha as novidades que vem aprontando, revê pontos cruciais de sua diversificada carreira, responde sobre possíveis arrependimentos e comenta os fatos atuais da conturbada política brasileira. “A polarização é antidemocrática”, critica.

IDADE
“Não sou de ficar pensando muito no tempo, porque é algo subjetivo. Às vezes, no espaço de um dia, a gente se sente velho, cansado e, no outro, muito jovem, esperançoso. Não sei se sou a melhor pessoa para fazer esse tipo de análise, mas acho que amadureci, não poderia ser de outra forma. Hoje, quando fico reincorporando todas as experiências que tive, sinto que, de alguma forma, se me desviei ou me perdi pelo caminho, eu experimentei as oportunidades. Estabeleci uma trajetória incomum, mas ela é minha. Tive uma carreira cheia de possibilidades e percebo que essa característica da integração me levou a ser quem eu sou.”

GALÃ
“Elvis Presley sempre foi meu ídolo, e eu gostava bastante da parte iconográfica e visual do trabalho dele, achava tudo muito bem feito. Então, na hora de posar para fotos, pode ser que eu fizesse alguma alusão à pose e ao cabelo do Elvis, mas era também na palhaçada. Não levava aquilo a sério, querendo ser um galã. A forma como te vendem não é, necessariamente, o que você quer passar. Nos meus shows, eu explico que compus, por encomenda, as músicas ‘As Sete Vampiras’ para o filme e ‘Conquistador Barato’ para a novela, e que elas não são autobiográficas. Por terem feito muito sucesso, as pessoas imaginavam que tinham a ver com a minha vida. Nunca foi minha ideia ser tratado como galã e confesso que isso foi um ‘bode’ para mim. Porque as pessoas, de alguma forma, sentem a necessidade de te catalogar, e todas as gavetas e prateleiras são limitadoras, especialmente quando não traduzem a sua onda. Essa gaveta, para mim, era desconfortável, mas, como tudo na vida passa, ela também passou.”

ARREPENDIMENTOS
“Tenho muitas músicas que acho que não foram importantes. Nunca tenho a expectativa de acertar em todas e o resultado nem sempre é satisfatório. Faço a comparação com um atleta de futebol, vôlei ou basquete, que não acerta todas as cestas ou chutes. Agora, de ter um discurso do qual eu me arrependa, não tenho nenhuma música. ‘Sônia’, por exemplo, que eu escrevi com 18 anos, acho que tem uma letra que traduz exatamente, de forma divertida e irreverente, como um jovem daquela idade lidava com os desejos, de não saber o que estava acontecendo, se era amor ou tesão. Não tenho vergonha de nada que eu tenha escrito, só que algumas músicas eu acho fracas, não me agradam.”

INÉDITA
“Agora mesmo eu estava diante de uma letra nova que estou fazendo. Tenho pensado muito nisso, é uma questão de focar para produzir, como se você fosse estudar para o tema de uma prova e precisasse se concentrar nele. Como não tenho mais uma relação frequente com a indústria da música, sem gravadora ou a perspectiva de gravar, isso me desanima a compor novamente. Dentro desse processo de recuperar a minha produção, o ato de compor era inevitável. Às vezes, eu lido com isso, os versos saem espontaneamente. Mas eu não sei se preciso e quero finalizar aquilo ou só colocar para fora naquele momento. Falta um sentido mais pragmático, de quando você tem data, repertório, projeto e precisa se organizar. Mas eu estou gostando que seja assim.”

VERSÕES
“Quando uma banda está começando, é comum que ela toque covers. Se você chegar só com material inédito, a comunicação com o público pode ser mais difícil. Ao invés de só tocar cover, a gente tinha mania de fazer as nossas versões, mas do nosso jeito. Às vezes, a gente refazia a letra completamente, tinha um espírito meio iconoclasta. Por acaso, essa semana eu estava traduzindo uma letra de que gosto para o português. Comecei de madrugada, estava batendo papo com o (cantor e ex-vocalista do RPM) Paulo Ricardo e ele disse que adorava me ver cantando músicas dos anos 50. Vi que dava para cantar essa música em português, respeitando a ideia original da letra. Não vou contar qual é para não gerar expectativa, mas não é uma letra divertida, descontraída. Acho que o compositor, o letrista e o versionista, estão todos aí.”

CAZUZA
“Conheci Cazuza por intermédio de uma amiga em comum, pelo telefone, ligando para São Francisco (nos Estados Unidos) para bater papo. Ele estava lá e começou a conversar comigo, e eu já estava achando estranho aquele telefonema longo, perguntei se ele não estava gastando dinheiro demais, e o Cazuza, daquele jeito dele, me disse que tinha pegado o cartão de crédito de outra pessoa e estava usando para ligar. Combinamos que, quando ele chegasse no Brasil, a gente ia marcar de encontrar e ficamos amigos assim, espontaneamente. Não tínhamos nem ideia de que seríamos artistas. A gente escrevia música e poesia e achava que venderia livro mimeografado no baixo Leblon, éramos dois adolescentes. Posteriormente, ele começou a fazer teatro e me chamava para dirigir as peças. Eu sempre arrumava um jeito de colocar ele para cantar, e foi um caminho que acabou dando certo para nós dois. Cazuza era muito intenso. Ele era uma pessoa quando estava bêbado e outra pessoa quando estava careta. Podia ser doce, divertido, carinhoso, e, ao mesmo tempo, também tinha um lado imprevisível e agressivo.”

GERAÇÃO 80
“Havia naquele período um traço geral de inocência ou idealismo, e hoje a gente percebe que o mundo todo está mais cínico, pragmático, talvez pela ausência de utopias. Nem sei se isso é uma coisa, necessariamente, ruim, mas era bem mais divertido daquele jeito. Com o espetáculo ‘Dance Comigo’, eu quis reincorporar certas atitudes que acabaram ficando para trás na minha carreira, como, por exemplo, dançar enquanto cantava. Era outra questão da qual eu vinha sentindo falta.”

ROCK
“Acho que, como o rap e o funk, o rock tem o papel de trazer uma linguagem juvenil, urbana e contemporânea. Uma linguagem que seja mais ousada e livre, descomprometida com os caminhos tradicionais da música brasileira, que eu respeito. Não sei se exatamente o rock, mas o rock do jeito que a gente conhece, o pop rock, que incorporou gêneros e origens musicais diversas, deve aumentar territórios e empurrar fronteiras. Ele é uma expressão popular, de comunicação espontânea, direta. Não precisa ser um músico estudioso para tocar. Sinto falta disso, que vejo acontecendo no rap e no funk. Acho que a música sertaneja não traduz a vida e os costumes urbanos, não sei nem se ela fala do sertão mais.”

SERTANEJO UNIVERSITÁRIO
“Existe um tipo de expressão juvenil, urbana e contemporânea, que merece ter uma voz dissonante. Sinto falta de uma música mais irreverente e iconoclasta no cenário nacional. Ela existe, mas não tem espaço. Quando a gente vê que 76% da música que toca no país atualmente é o chamado sertanejo universitário, isso não traduz a realidade do povo brasileiro, mas de um mercado que funciona assim e foi dominado. Podemos ter uma variedade maior. Tem, ou deveria ter, lugar para todo mundo. A música brasileira é muito rica e variada, com infinitas possibilidades. Minas tem uma contribuição fantástica, com Milton (Nascimento) e o Clube da Esquina, que nos deu uma música melodiosa, sofisticada, vinda de várias fontes. Minas também tem sertão e, nem por isso, produz apenas música sertaneja.”

LIBERDADE
“Precisamos fazer uma música mais eloquente, forte, que não pareça de apartamento, mas que reúna as pessoas para cantar juntas e celebrar, como a gente vê nos festivais de rock. Uma manifestação dos desejos de união, prazer e alegria. Quando comecei a carreira, uma expressão que a gente adorava usar era ‘música não comercial’. E fico pensando que, quando o Queen lançou (a música) ‘Bohemian Rhapsody’ (em 1975), com um andamento imprevisível, ela já era anacrônica para tocar no rádio. Foi uma ousadia total e está aí até hoje. Esse tipo de liberdade deu contribuições importantíssimas para a música.”

MARKETING
“Hoje, todas as músicas que tocam no rádio e na TV têm a mesma duração, são executadas em 4×4 (compasso musical). Faltam elementos mais surpreendentes. Está na hora de a gente se permitir criar fora das regrinhas do marketing. Lembro de uma música muito conhecida minha, que até hoje me dá muita alegria, que é ‘A Vida Não Presta’, e ela não tem refrão. É uma das mais cantadas do meu repertório. Na época que ela foi composta, existia essa liberdade, de dizer: ‘deixa sem refrão, não precisa, tá bom assim’. Citei só dois exemplos, mas existem inúmeras outras músicas assim.”

POLÍTICA
“Sempre fui contra essa história de polarização e percebo nesse tipo de atitude um caráter de radicalismo porque, em essência, o tal do ‘nós contra eles’ significa perdoar todos os crimes do ‘meu lado’, porque eles foram cometidos em nome do aniquilamento ‘do outro lado’, que comete crimes piores. Passou da hora de a gente entender que nenhum crime, de nenhum lado, deve ser perdoado ou encarado com vistas grossas. É preciso haver critérios de civilidade que, em última instância, são a própria lei, a democracia e a Constituição. Esse momento está botando por terra esse tipo de pensamento radical e está servindo para as pessoas entenderem que é possível e necessário estabelecer objetivos comuns. O que interessa a todos nós independe de ideologia ou religião.”

PRESIDENTE
“Precisamos nos unir e gastar energia buscando o bem comum, compreendendo e edificando esse território, ao invés de ficar na picuinha e no quebra-pau. Todo dia tem uma notícia bombástica para ser debatida. O presidente (Jair Bolsonaro) fez isso durante a campanha eleitoral (de 2018) e continua fazendo e pautando a imprensa. Não vejo se falar em saneamento básico, educação de qualidade, experiências de saúde que deram certo ao redor do mundo no combate ao coronavírus para serem trazidas e adaptadas à realidade do nosso país. Temos que procurar os pensadores e cientistas da área e ouvir o que eles têm a dizer sobre o que pode ser feito pelo interesse comum. Isso se chama democracia e essa história de polarização é, sobretudo, antidemocrática.”

Raphael Vidigal

Imagens: Dantas Jr./Divulgação

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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