Por que as “lives” fazem tanto sucesso em época de quarentena?

“ – Minha vida pessoal é uma coisa que não interessa nem a mim.” Mario Quintana

O estrangeirismo barato começa pelo nome, fato que seria insuportável para o protagonista do romance “Triste Fim de Policarpo Quaresma” (1915), de Lima Barreto, que não admitia sequer o uso da palavra buquê em lugar de arranjo de flores, quando a moda era falar afrancesado.

É bom desconfiar de qualquer movimento dito “espontâneo” dentro da indústria fonográfica, mas, quando ressurgiram na quarentena, essa era a natureza atribuída às “lives”, cuja tradução óbvia e literal é o batido “ao vivo” da televisão brasileira. Bastaram algumas “lives” para que um verdadeiro enxame delas se proliferasse nos aplicativos virtuais, englobando estilos tão diversos e um número cada vez maior de participantes que é inútil nomear os artistas que toparam essa aventura.

Até porque, para além do gênero, permanecem características inerentes ao formato. Por exemplo, a baixa qualidade da transmissão, decorrente tanto da quantidade de usuários conectados ao mesmo tempo quanto da falta de estrutura dos equipamentos – com uma ou outra exceção daqueles que são hoje a coqueluche do entretenimento musical: o segmento do sertanejo universitário.

Outro ponto comum é o clima de descontração que se estabelece entre público e artista, gerando uma proximidade que, não raro, descamba para o amadorismo puro e simples. Afinal de contas, lá estão aquelas figuras estelares, por vezes desfeitas de maquiagem, apresentando clássicos da canção popular do sofá de casa, ajeitando os óculos e assumindo os erros como se estivessem num ensaio.

A interação continua quando o músico se sujeita a ler os comentários enviados pelos fãs, no modelo cartinha de antigamente, tomando o cuidado necessário de selecionar aqueles de exaltação ou que tenham algum traço cômico. Chega a ser de um constrangimento difícil de ser superado.

Nessas horas, lateja com mais força a importância do trabalho de cenógrafos, figurinistas, iluminadores, diretores, enfim, toda uma equipe técnica e artística que costuma adornar o que se convencionou chamar de show, outro estrangeirismo do qual jamais nos veremos livres e que traria nostalgias a Policarpo Quaresma daqueles tempos imemoriais dos concertos.

Afinal de contas, nossa língua está longe do puritanismo, já que o nosso próprio português é fruto de assimilações regionais, e o tupi-guarani que o herói de Lima Barreto defendia é hoje um cadáver frio. Mas daí a essa submissão a um americanismo chinfrim ainda há uma distância a ser percorrida.

De toda forma, um espetáculo não se baseia apenas na emissão da voz dos intérpretes, pois, como determinou brilhantemente o poeta Mario Quintana, “é na intenção que está o supremo encanto”. A experiência artística se realiza no encontro de circunstâncias que devem convergir num sentido ético e estético, ainda que seja o da contradição ou dos opostos, mas ela precisa querer ou efetivamente dizer alguma coisa, e não apenas angariar números astronômicos e cifrões inenarráveis. O contexto que a envolve contribui para essa intenção.

Apesar dos pesares, as mal fadadas “lives” são um sucesso da quarentena. O que nos leva a questionar o motivo dessa assimilação coletiva. Não se pode descartar o efeito manada, a ideia de que as pessoas se sentem bem em estar onde todo mundo está, a percepção de que não se está sozinho e de que aquele momento está sendo dividido com uma porção de gente que faz questão de comprovar a tese em suas redes sociais. É provavelmente o maior trunfo do formato nesse período de solidão provocado por uma pandemia que, inacreditavelmente, ainda é desacreditada por autoridades mundiais.

Mas é irônico, dado o individualismo exacerbado da contemporaneidade, a impulsão do capitalismo aos interesses do sujeito em detrimento da coletividade e, mais ainda, numa época em que a arte é atacada covardemente por figuras medíocres como o ex-deputado carreirista Jair Bolsonaro, atual ocupante da cadeira de Presidente do Brasil.

Um vírus invisível aos olhos esclareceu aos incautos por meio da experiência, que ensina infinitamente mais do que o discurso, a imprescindibilidade de um Estado atuante, presente, forte, ao alcance de todos e, principalmente, dos mais vulneráveis, assim como a necessidade da arte para ultrapassar o rame-rame dessa existência absurda e a prevalência do coletivo em momentos de crise.

Pena que, para tanto, o antídoto seja de baixíssima qualidade. Àqueles da contracorrente, a sugestão é garimpar espetáculos gravados com o devido apuro e disponibilizados na internet.

Raphael Vidigal

Imagens: Marília Mendonça em seu trono de ferro durante live; e Paulo José no filme “Policarpo Quaresma, Herói do Brasil”, de 1998, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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