Mostra ‘Clássicos do Cinema Japonês’ tem protagonismo de mulheres

*por Raphael Vidigal

“o sol nascente
me fecha os olhos
até eu virar japonês” Paulo Leminski

“Esses homens são umas bestas!”, desabafa a garota japonesa em determinada passagem do precioso “O Sabor do Chá Verde Sobre o Arroz” (1952), um dos três filmes de Yasujiro Ozu (1903-1963) que integram a mostra “Clássicos do Cinema Japonês”, disponibilizada gratuitamente no canal do YouTube da Fundação Clóvis Salgado, em cartaz até o dia 9 de julho, e que oferece, no total, dez longas-metragens produzidos entre 1949 e 1953. A fala parece expressar uma constante na programação: não raro, os representantes do sexo masculino exibem na tela uma plácida estupidez, ao que as mulheres respondem não só com sabedoria, como, principalmente, obstinação.

Parte delas a iniciativa de se rebelarem contra os casamentos arranjados que marcaram a cultura japonesa do século XX. O tema é tão presente quanto o trauma do pós-guerra que devastou o país. Sobre isso, a percepção mais aguçada aparece em “Cartas de Amor”, (1953), estreia da atriz Kinuyo Tanaka atrás das câmeras e um dos primeiros filmes japoneses dirigidos por uma mulher. “Todos nós, japoneses, somos responsáveis pela guerra”, ensina o fiel amigo a Mayumi, que se recusa a perdoar os pecados da mulher amada em virtude de ela ter se entregado à prostituição depois de perder o marido nos campos de batalha.

A força feminina também dá o tom em “Batalha de Rosas” (1950), de Mikio Naruse. Ali, acompanhamos a trajetória de uma viúva que se torna uma bem-sucedida empresária do ramo de cosméticos, enquanto as irmãs tomam direções opostas: uma renuncia ao amor e se submete a um matrimônio forçado, e a outra decide perder a virgindade e não se apegar a laços afetivos. A narrativa soa avançada até para os tempos atuais – ainda mais no Brasil governado por quem é atualmente – mas descamba para o melodrama. Não tanto quanto “Senhorita Oyu” (1951), de Kenzi Mizoguchi, que aceita o novelesco sem medo de ser feliz.

A trama é rocambolesca, de um sujeito que se casa com a irmã da mulher que ama para permanecer perto dela. Mais uma vez, são as mulheres que dão as cartas. Mizoguchi se sai melhor em “Contos da Lua Vaga” (1953). Em formato de fábula, a história se passa no século XVI, durante a guerra civil e, como é comum no gênero, traz uma bela lição de moral. As mulheres são sacrificadas, mas são os homens que terão de expiar suas dores. Do mesmo diretor, “A Música de Gion” (1953) escancara a verdade por trás da vida das gueixas que os japoneses teimam em esconder.

Já em “Relâmpago” (1952), o título misterioso só é explicado no desfecho, como uma espécie de epifania ou iluminação que atinge a protagonista. Ela rejeita casar-se sem afeto, e lamenta: “Me convenço que o casamento é uma desgraça para as mulheres”. “Irmão, Irmã” (1953), outro de Naruse, apresenta a sofrida Môn, que engravida e coloca a sua reputação em risco. Aqui, as relações familiares são postas à prova. Tal qual em “Pai e Filha”, (1949), mais uma contribuição sublime à sétima arte do mestre Ozu.

Donos de um ritmo próprio, os roteiros se desenrolam calmamente, com uma decantação laboriosa. A acuidade cênica sempre salta aos olhos. Marca indefectível de Ozu e sua famosa “câmera parada”, a composição dos quadros é milimétrica, precisa. Clássico absoluto, “Era Uma Vez em Tóquio” (1953), sobre a velhice e, no fundo, a própria existência, nos interroga sem comiseração: “A vida não é uma decepção?”. A resposta é ensurdecedora, embora glacial.

Imagens: Fundação Clóvis Salgado/Reprodução.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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