Premiada por ‘A Vida Invisível’, Carol Duarte se declara feminista

*por Raphael Vidigal

“Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.” Sylvia Plath

Os chamados insistentes vindos da cozinha não a demovem. “Eu não consigo fazer os meus dedos pararem!”, diz, animada, enquanto toca o piano com uma volúpia capaz de prenunciar um destino triunfante. A cena é parte do filme “A Vida Invisível”, dirigido por Karim Aïnouz, que venceu os festivais de Cannes e Munique no ano passado e acompanha a trajetória de duas irmãs. Carol Duarte, 29, que dá vida à protagonista Eurídice Gusmão, faturou, na última semana, o Prêmio Platino Ibero-Americano na categoria melhor atriz, e se tornou a segunda brasileira a alcançar tal feito, se igualando a Sonia Braga, que, em 2017, foi laureada pela atuação em “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho.

“Essa é uma conquista, não só minha e da equipe do ‘Vida Invisível’, mas do nosso cinema nacional. O prêmio abarca as produções de língua portuguesa e espanhola, ou seja, a América Latina está em peso na premiação, e nós brasileiros, latino-americanos, estamos produzindo um cinema em diálogo com o ibero-americano (que compreende Portugal, Espanha e todos os países de língua espanhola das Américas, como o México). Eu fiquei muito feliz e honrada”, declara Carol, que, em 2019, levou o Troféu APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Baseado no romance “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, da pernambucana Martha Batalha, o longa-metragem teve produção dividida entre Brasil e Alemanha. O livro, inclusive, foi publicado primeiro na Europa.

Silêncio. Mas, para compor a sua personagem, Carol não teve acesso a ele, por uma determinação do diretor Karim Aïnouz, cujo currículo apresenta títulos de destaque como “Madame Satã” (2002), “O Céu de Suely” (2006) e “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2010), este em parceria com Marcelo Gomes. Além de uma pesquisa histórica sobre o Rio de Janeiro dos anos 1950, ela se fiou na bibliografia da escritora Clarice Lispector (1920-1977), que tem o centenário de nascimento celebrado neste ano, e no clássico “Uma Mulher Sob Influência” (1974), uma das obras-primas do diretor John Cassavetes (1929-1989), que atuou em “O Bebê de Rosemary” (1968), terror de Roman Polanski.

“Eu, particularmente, vi na Eurídice uma dificuldade grande, que era dar conta de comunicar o indizível. É uma personagem que não está nas linhas do diálogo, ela foi construída no silêncio, mais no que ela não diz do que no que diz”, comenta a atriz. A marcante estreia cinematográfica de Carol foi precedida por outros papeis de impacto. Em 2017, ela causou rebuliço como o transexual Ivan na novela “A Força do Querer”, da Globo. Um ano depois, interpretou a prostituta Stefânia, em “O Sétimo Guardião”. “É uma profissão que todos sabem que existe, mas que a sociedade insiste em esconder, em furtar direitos trabalhistas e colocar na marginalidade, mas ela não é novidade na dramaturgia, há um fetiche, uma curiosidade sobre a vida dessas mulheres”, opina.

Brado. Homossexual assumida, Carol namora Aline Klein desde 2012, com quem mora, e se considera feminista. “Não existe feminismo que não leve em conta o racismo, a classe social, a questão LGBTQI+, afinal está tudo na mesma estrutura”, pontua, antes de atacar as políticas reacionárias. “A luta deve continuar, ela é árdua, e é também dos homens, porque enquanto eles sustentarem essa rede de solidariedade perversa que se chama patriarcado, teremos ainda mais barbárie e conservadorismo”, defende. Criada em São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo e berço político do ex-presidente Lula, ela é crítica do atual governo federal. “Podemos demorar muitas décadas para nos reerguermos, digo internamente e na nossa reputação internacional. É vergonhoso e pavoroso esses homens que andam por Brasília”.

A condução diante da pandemia do novo coronavírus, responsável pela morte de mais de 65 mil brasileiros até aqui, não passa incólume. “Nossa história política é complexa, mas finalmente chegamos a um Estado fascista, e ele sempre vem com negacionismos, mentiras, racismo, inimigos inventados, um ‘salvador da pátria’ e um nacionalismo torto. A gestão de Jair Bolsonaro é desastrosa, e não sabemos quanto mais ele vai destruir e qual vai ser o rombo desse governo, o que vai sobrar. São mais de 60 mil mortos, e a nossa pior doença chama-se ‘família Bolsonaro’, que está destruindo tudo por dentro e matando milhares”, desabafa Carol.

Como foi o trabalho de composição da personagem Eurídice Gusmão?
O trabalho de construção da Eurídice foi muito intenso, tivemos preparação com a (preparadora de elenco) Nina Kopko e o próprio Karim Aïnouz, diretor do filme, e foi um pouco mais de um mês de um mergulho muito profundo, para Aïnouz não tem meio termo. Eu estudei piano por muitos meses, não sabia tocar nada no início. Eu e a Julia Stockler, atriz que faz a Guida (irmã de Eurídice), estivemos muito juntas na composição das personagens, pesquisamos a década de 1950 no Rio de Janeiro, e minha bibliografia tinha Clarice Lispector como referência, além do filme “Uma Mulher Sob Influência” do (John) Cassavetes. Tivemos aula de bordado, de etiqueta, assisti a concertos de piano, enfim, foram meses de muita pesquisa.

Qual foi o principal desafio desse trabalho para você?
Eu, particularmente, vi na Eurídice uma dificuldade grande, que era dar conta de comunicar o indizível. É uma personagem que não está nas linhas do diálogo, ela foi construída no silêncio, mais no que ela não diz do que no que ela diz. Ela é uma dona de casa, não foi pianista, ela foi grande naquilo que ela poderia ter sido, mas ela tinha muitos desejos quando jovem. O ponto nevrálgico foi o profundo amor pela irmã, e o afogamento de Eurídice por todos aqueles homens que a rodeavam. Esses dois pontos conduziram o destino dessa personagem.

Em quais pontos você se identifica com a personagem Eurídice Gusmão?
Eu me identifico com a Eurídice no silenciamento, no que poderia ter sido falado e não foi. Em diversas vezes na minha vida, eu não falei quando precisava, diante de uma situação de opressão, humilhação e apagamento, e por tantas vezes me culpei por isso. Dificilmente iremos achar uma mulher nessa sociedade em que vivemos que não passou por isso.

Diante da temática abordada em “A Vida Invisível”, de invisibilidade e sufocamento da mulher, onde você acha que avançamos, regredimos ou estagnamos no que tange à liberdade da mulher na sociedade brasileira?
Devemos sempre pontuar a importância da luta das feministas para estarmos aonde estamos, nada foi cedido por bondade ou reconhecimento de opressão, mas foi conquistado com muita luta e pressão por parte das mulheres. Vivemos numa estrutura muito elaborada, que condiciona a mulher a ser uma simples reprodutora, mas podemos ir além, a linguagem que utilizamos reforça o tom pejorativo no que tange à mulher, como dizer que “isso é coisa de mulherzinha”. Foram inúmeras as mulheres invisibilizadas na história, e ainda são. O sistema patriarcal e as políticas reacionárias e conservadoras, sobretudo agora, fazem de tudo para apagar e escrutinar tantas de nós. Precisamos falar sobre feminicídio, sobre a misoginia que compõe a estrutura de pensamento que agride nove mulheres a cada 60 segundos no nosso país. É apagamento físico, mental, sentimental e social, portanto, a luta deve continuar, ela é árdua, e é também dos homens, porque enquanto eles sustentarem essa rede de solidariedade perversa que se chama patriarcado, teremos ainda mais barbárie e conservadorismo.

Você se considera feminista? Na sua opinião, quais devem ser as pautas prioritárias do movimento?
Eu sou feminista, e acho que as nossas pautas devem estar ligadas à destruição de uma complexa estrutura social e econômica. Não existe feminismo que não leve em conta o racismo, a classe social, a questão LGBTQI+, afinal está tudo na mesma estrutura, o pensamento conservador vai escrutinar tudo que tem a possibilidade de furar a “normalidade” de um sistema que os beneficia, que eles criaram com fins próprios. Como diz (a escritora e poeta norte-americana) Maya Angelou (1928-2014): “A verdade é que nenhum de nós pode ser livre até que todos sejam livres”.

Em novelas, você deu a vida a duas personagens que abordavam temas discriminados na sociedade brasileira: a transexualidade e a prostituição. Como é abordar esse tipo de questão no Brasil que elegeu Jair Bolsonaro?
Eu tive uma experiência muito bonita com o Ivan da novela “A Força do Querer”, porque foi uma personagem muito bem recebida pelo público, ainda que sejamos o país que mais mata pessoas LGBTQI+ no mundo. Precisamos levar em conta o fato de que o Ivan era de uma família rica, branca, muito bem vista pelos padrões brasileiros raciais, mas, ainda assim, foi uma vitória, a personagem está lá viva até o último episódio. A Stefânia é uma prostituta, o que não é novidade nas produções audiovisuais. Eu acho que tem a ver com uma profissão que todos sabem que existe, mas que a sociedade insiste em esconder, em furtar direitos trabalhistas e colocar na marginalidade, mas ela não é novidade na dramaturgia, há um fetiche, uma curiosidade sobre a vida dessas mulheres.

O que você pensa sobre o governo do presidente Jair Bolsonaro?
Nossa história política é complexa, mas, finalmente, chegamos a um Estado fascista, e ele sempre vem com negacionismos, mentiras, racismo, inimigos inventados, um “salvador da pátria” e um nacionalismo torto. A gestão de Jair Bolsonaro é desastrosa, e não sabemos quanto mais ele vai destruir e qual vai ser o rombo desse governo, o que vai sobrar. Podemos demorar muitas décadas para nos reerguermos, digo internamente e na nossa reputação internacional. É vergonhoso, é pavoroso esses homens que andam por Brasília. São mais de 60 mil mortos (pela epidemia do novo coronavírus), e a nossa pior doença se chama ‘família Bolsonaro’, que está destruindo tudo por dentro e matando milhares.

Quando você decidiu que seguiria a carreira artística e quem são as suas principais referências?
Eu decidi quando tinha uns 15 anos, estava completamente apaixonada e obcecada pelo teatro, queria fazer faculdade e estudar muito, tinha como referência um grupo de teatro chamado LUME, ligado à Universidade de Campinas, e queria viver de teatro. Assisti pela primeira vez a um grupo de teatro francês, chamado Théâtre du Soleil, e fiquei estarrecida! A atriz famosa de que me recordo sempre é a Fernanda Montenegro (que também atua em “A Vida Invisível”), mas, depois, fui expandindo as minhas referências.

De que maneira você tem lidado com a quarentena e quais são os seus próximos planos?
Oscilo entre altos e baixos, as notícias são difíceis de engolir, é desesperador, fico pensando o que vai sobrar de nós depois desse momento, temos uma pulsão de morte muito forte agora, o negacionismo e as mentiras pintam um quadro ainda pior. Penso nos artistas pós-guerra, o que sobrou de poesia depois de desastres. Mas sigo aqui, tentando manter a sanidade, no privilégio de ter um emprego e poder realizar a quarentena, cuidando das pessoas próximas que eu quero bem, e das que eu não conheço. Estou num projeto de uma série como roteirista, podendo trabalhar em casa, tentando vislumbrar beleza e poesia.

Fotos: Júlia Rodrigues/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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