Sons Naturais de Marku Ribas

“Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
Suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor” Carlos Drummond de Andrade

Marku-Ribas

Reparou no coco. Sobre a rija e esverdeada superfície crepitava o sol. Como uma manta branca a cobrir o fruto, e ainda mais abafá-lo, o astro lhe fascinava os olhos, que ao queimarem-se acentuavam a coloração castanha das pupilas jovens. Escorria na testa, crescendo a partir dos frondosos cabelos e avolumando-se à medida do alcance terreno às igualmente sedosas sobrancelhas, espécie de suores irritáveis e salgados. Intransigente à incômoda sensação assimilou o som.

Se o tiro seco do sol sobre coco dava-lhe o sentimento de um mundo vazio, abstrato, oco, a correnteza das águas nascendo de ti e em si mesmo encerrando-se era a veloz certeza da vida: cheia, convicta, irrefreável. E o sabor enjoativo, perigoso, mal certo, em muita quantidade, para o estômago, não lhe atrapalhou o paladar, pois substituíra o suor próprio por águas doces do enorme rio a banhar Pirapora. Nas beiras do São Francisco conhecia não só os alívios do refrescar-se, mas também as cantigas das lavadeiras.

Senhoras, em absoluta maioria, de cores negras, índias, mulatas. Já escondia numa das mãos, a essa altura, os talos que prendem os cocos às gigantescas árvores. Aproximou-se sorrateiramente, e não tivera escrúpulos em arrancar das mãos trabalhadeiras e calejadas pelo tempo os fios de roupas que seriam ramos de plantas nos recém adquiridos instrumentos. Os couros e surras das vassouras de piaçava vinham na forma de sermões, e se ignorada a estridência do gesto de raiva, perfeitamente caberiam nas procissões noturnas.

Com velas e cânticos de escravos, brancos, misturados, marchavam audazes os cavalos de senhoris do campo, donos de engenho, proprietários de fazenda, onde se moía o milho, a cana, o feijão, o arroz, a sustança. No que um potro rebelde de estrela vermelha, brilhante qual rubi, pintada no alto da cabeça, e loiras tranças contraditórias à pele preta, eriçou o pelo e levantou os cascos para os passantes e passados com a atitude inesperada, houve corre-corre, pega-pega, ziguezagueante, esconde-esconde.

O menino ria. Provocante de tal heresia, pois era o cavalo de tuas alegrias. O cavalo andante passeou por Jamaica, Minas, África e Caribe. Conheceu Bob Marley, infiltrou o rastafári e o reggae nas terras de palmeiras. E na América soberana e autoritária riu-se imenso ao evocar aos The Rolling Stones as pedras a rolarem na ribanceira: fluidas, limosas, matreiras. O sorriso fresco, negro, inquieto, do tamanho do mundo, cresceu-lhe no estômago, tanto que engoliu a barriga, a barreira, o barranco, o tempo.

Menino esguio de atitudes certeiras desafiou premissas, afrouxou certezas, fixou o único argumento possível: os sons naturais de Marku Ribas, do coco de Pirapora às flores jamaicanas.

Marku-Ribas-Musica

Raphael Vidigal

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5 Comentários

  • Quanta beleza, Raphael! O Marku deve estar flutuando nas nuvens depois dessa bela e merecida homenagem. Você captou como ninguém o espírito (assim como os olhos e o sorriso) do nosso querido Marku. Que ele siga sua trilha de luz até o infinito. Grande beijo, Lígia Jacques – cantora

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  • Linda homenagem, lindo texto Raphael! Parabéns! Marku Ribas está na luz, compartilho com a Lígia Jacques… e rindo mais.

    Resposta

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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