Bibi Ferreira No Show Histórias & Canções

“e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa.” Rilke

Bibi-Ferreira

Agasalhado, comprimia os braços em torno do peito para afastar o bafo do inverno. Evidentemente havia-se marcado entre nós dois uma distância intrínseca. As cortinas já estavam abertas quando cheguei. No entanto, fui, contra minha vontade, obrigado a esperá-la ainda mais um tempo, enquanto a orquestra atacava ao fundo um número de Chico Buarque. Pobre de alguém se pensa que controlei os nervos. Durante toda a apresentação instrumental mantive os olhos fixos no corredor estreito, à direita, na expectativa da entrada triunfante a qualquer momento, e que, portanto, eu lhe lançasse o primeiro aceno, ao que imediatamente ela me retribuiria com um gracejo, mas nada aconteceu, e a frustração colou-se em torno de minhas expectativas novamente.

Outro número instrumental da orquestra. Infelizmente não posso oferecer relatório verossímil acerca das qualidades da mesma. Prefiro, nesse momento, ater-me à sinceridade, e concluir que meus ouvidos, embora à mercê do som em cena, praticava igualmente a saga dos olhos, que sobre o corredor estreito, à direita, concentrara toda a atenção. Um mínimo movimento, presunção do mesmo, delírio, ou pressentimento, alvoroçava-me o espírito como pombos desnorteados quando milho e alpiste lhes são jogados na praça. Nada disso, com certeza, era suficiente para apressar-lhe a entrada em cena. Certamente estava a retocar a maquiagem, concentrar-se nos temas, ajeitar o vestido para caber bem no corpo envelhecido e vivíssimo. Para malograr-me um pouquinho mais, apertei os cadarços dos sapatos.

Ante a saraiva súbita de palmas, assovios, urros, gritos, dos histéricos aos galanteadores, levantei como num susto a cabeça, e choquei-a violentamente contra os grossos braços de um robusto senhor cuja idade ultrapassava os setenta anos. Como uma rocha atingida pela água, ele permaneceu repetindo o gesto incontido e batendo uma mão à outra, enquanto eu, desnorteado e ávido, esforçava-me para ignorar a dor e prestar atenção a ela. O teu vestido marinho, enfeitado por brilhantes pedras, a pendia como num céu ao anoitecer, em que estrelas pouco a pouco se aproximam da cadente lua. Não se discernia a menor pista de esforço, enfado, mesmo persistência. Para ela estar ali se assemelhava a passear na rua, ou sair do banho e ir em direção à toalha para, com a calma de uma atividade relaxadora, secar-se.

Pois ela nem se deu ao trabalho de colocar os dedos sobre o microfone. Postou-se de frente para ele. O inanimado objeto foi tocado por um brilho intenso, causa dos holofotes para os céticos habituais, mas a dúvida perene concernia à presença de Bibi Ferreira. Afinal era sobre ela que brilhavam as pedras do vestido? Era sobre o metálico microfone? Ou sobre a platéia? O enigma do artista permanecia invicto. A voz sequer cumprimentara os presentes. A orquestra emudecera. Tudo ao redor resfolegava o silêncio. Palmas, assovios, urros, cessaram-se. A boca matinal comprimiu-se numa expressão francesa, e o simples biquinho suficientemente levou ao êxtase o mundaréu sob o qual se eclipsaram todos, exceto Bibi, a brilhar na escuridão do show “Histórias & Canções”. O brilho a era.

Bibi-Ferreira-Historias-Cancoes

Raphael Vidigal

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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