Sérgio Pererê: ‘Hoje, ser famoso quase não tem a ver com ser artista’

*por Raphael Vidigal

“Existe uma foto em que estou sorrindo como se mostrar todos os meus dentes fosse salvar o mundo” Lesley Nneka Arimah

No bairro Glória, existe um pé de manga com a mesma idade de Sérgio Pererê, 44. É lá, na casa onde nasceu e cresceu, que o multi-instrumentista belo-horizontino realiza neste sábado (23), a partir das 21h, a live de lançamento de “Revivências”, o seu mais novo disco, o primeiro de intérprete em uma carreira iniciada no mercado fonográfico com “Tambolelê” (2001), e que se pautou pelo trabalho autoral. “Por ser compositor e ter muito a dizer, eu acabei priorizando, a vida inteira, as minhas composições, mas, ao mesmo tempo, convivi, desde cedo, com influências trazidas pelo meu pai, que era seresteiro, e cresci escutando, ao lado de minhas irmãs, muita MPB e até artistas de fora, como Michael Jackson e James Brown”, conta Pererê.

A ideia do álbum surgiu em uma conversa com o produtor Elias Gibran, que o acompanha há décadas, frente a um cenário de conturbação política que, segundo Pererê, foi “o start de tudo”. “Depois fui relaxando e abrangendo outros caminhos”, diz. “Naquele momento inicial do golpe (contra a ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016) eu cantei, em um show, a música ‘Roda Viva’, do Chico Buarque, que é cada dia mais atual”, pontua ele. O samba foi composto em 1968, às vésperas do AI-5 (Ato Institucional n.º 5) que endureceria ainda mais a ditadura militar vigente no Brasil, e, após ser apresentado, com ousadia, na peça homônima dirigida por Zé Celso Martinez Corrêa, despertou a ira de grupos de direita que agrediram os atores e destruíram os cenários do Teatro Galpão, em Porto Alegre.

Repertório. A faixa é uma das dez que integram o repertório, e divide espaço, por exemplo, com “Pequena Memória para um Tempo Sem Memória”, libelo de Gonzaguinha (1945-1991) acerca dos anos de chumbo, que ganhou um registro de Elza Soares no ano passado. “São tantas lutas inglórias/ São histórias que a História qualquer dia contará/ De obscuros personagens/ As passagens/ As coragens/ (…) São cruzes sem nomes/ Sem corpos, sem datas”, detectam os lancinantes versos. “Existem compositores que, só de cantar, você já situa um determinado contexto político. São os casos do Gonzaguinha e do Chico (Buarque). Eu sinto que esse disco ficou ainda mais político do que já era”, constata Pererê.

“Selvagem”, dos Paralamas do Sucesso, encaixa-se nessa categoria. Originalmente um pop rock, ela é revisitada apenas com instrumentos percussivos de origem africana, casos da timbila, do djembé, da caixa e do tamá. “Quando pegamos uma música que já foi gravada pelo compositor e por outros intérpretes, a intendência é a gente respeitar, para não invadir a obra. Por outro lado, busquei um jeito de levá-las para o meu universo e, quem ouvir, vai perceber essa sonoridade que é muito minha, o que me deixou à vontade. Foi tudo muito simples, porque eram canções que eu sempre cantei em casa ou dando canja em shows, e, de alguma forma, elas já estavam na minha embocadura”, observa o músico.

Esperança. “Juízo Final”, clássico de Nelson Cavaquinho, se transformou em uma variação de bumba-meu-boi do Maranhão. Com a pandemia do novo coronavírus, Pererê acredita que a música teve o seu sentido renovado e, não por acaso, ela fecha o álbum. Para comprovar a tese, ele cita o trecho “o amor será eterno novamente”. “Apesar do título, essa canção não tem nada de apocalíptica. Ela nos convida para um alento, uma esperança”, aponta. “Todas as músicas têm mensagens profundas, que vão nos fortalecer um pouco”.

Da pouco relembrada “Só”, de Luiz Melodia (1951-2017), ele pinça o verso “mesmo se tudo juntar por aí/ em nós, o só há de sempre existir”. Os dois tiveram um breve contato, durante um encontro de artistas promovido pelo projeto Natura Musical, em São Paulo, no mesmo ano de 2017 em que Melodia morreu. Do ídolo Gilberto Gil, “Tempo Rei” surge para trazer “um pouco de serenidade e reflexão sobre a supremacia do tempo”. “Tudo que está acontecendo vai passar, e existe um eixo de estrutura que se manterá vivo ou se movimentará em torno disso, para a gente reconstruir e continuar”, garante.

Criação. O caráter de homenagens prossegue com “Estrela”, de Vander Lee (1966-2016), segundo Pererê “um irmão de alma” que ele perdeu. “Nós dois éramos piscianos. Aliás, eu estou preparando um disco que, a princípio, deve se chamar ‘Canções de Outono’, com uma faceta que as pessoas não estão acostumadas a me ver, que é a de falar sobre canções de amor, romances e paixões. Deve ser a saudade do Vander Lee”, entrega. A produtividade intensa de Pererê resultou em um recorde pessoal. Só em 2020, ele coloca na praça cinco novidades. Além de “Revivências” e de “Maurício Tizumba e Sérgio Pererê Ao Vivo”, ambos já lançados, estão no script “Canções de Bolso”, “Coração de Marujo” e o registro ao vivo de “Cada Um” (2018), seu trabalho solo até então mais recente.

“Não sei se é a idade, mas compor foi se tornando algo muito orgânico em mim e tem me salvado de uma série de situações”, diz. A epidemia planetária teve papel crucial na decisão de jogar os discos no mundo. “Não tem por que segurar as músicas. Não vamos circular com shows, turnês. Estrategicamente, são eventos que servem para reverberar a obra. O contato com o público agora é outro, é de mostrar o que temos de novo”, ressalta. Diante disso, o cantor confirma a intenção de realizar apresentações cheias de entrega, “como se fosse a primeira e a última da minha vida”, destaca.

Solidariedade. “Não sabemos o que vai acontecer nesse período de quarentena, o ambiente é de muita dúvida”, declara o músico, que mora sozinho e tem encarado o isolamento social com telefones frequentes entre amigos. “Acho que nunca conversamos tanto. Sinto que, para cada um de nós, foi proposto esse desafio de fazer uma revisão de valores, olhar para dentro de nós e de quem está mais próximo. E, no meio de tudo que está ruim, o que vejo de bom é que começamos a desenvolver uma solidariedade maior. Eu sei que está difícil tanto para mim quanto para os meus amigos músicos, técnicos de som e de luz, contrarregras, figurinistas”, enumera.

“Com relação a nós, artistas, que é o ângulo com o qual eu observo a realidade, eu percebo que estamos recebendo a oportunidade para apreender uma série de lições. Fomos criados em uma estrutura, que tem a ver com o sistema capitalista, mas que é, sobretudo, europeia e nos obriga a crer que alguns estão acima e outros devem ficar embaixo. Esse momento nos colocou para refletir a respeito de uma horizontalidade maior”, observa. “Trabalho com a arte há muitos anos e sempre busquei um olhar para o social e a formação das pessoas. Sempre enxerguei a arte como uma utilidade pública e a cultura como um direito de todos, uma espécie de comida, bebida e saúde que pessoas de todos os sexos e idades precisam”, completa.

Celebridade. Na visão de Pererê, “existe um mercado de arte, que é necessário para o trabalho, porém, ele cria a ilusão de ícones e mitos”. “Uma coisa é ser artista, a outra é ser famoso. Chegamos ao ponto em que uma coisa quase não tem a ver com a outra”, critica. Ele atribui à “febre dos reality shows que começaram junto com o terceiro milênio” parte dessa culpa. “Para ser famoso, basta aparece em tal lugar e as pessoas te seguem. A quarentena deu uma nivelada nisso, porque não existe mais lugar nenhum. Você pode estar no Rio, na Bahia, em Minas ou no interior do Maranhão que é igual. Ninguém está sendo visto nos grandes palcos”, pondera.

Com as lives abertas ao público e a possibilidade de uma interação virtual, ele enxerga essa horizontalidade como “um movimento bonito”. “Não acho que seja uma solução porque não estamos diante de soluções para a nossa vida prática, que está cheia de contas para pagar, mas, talvez, tenha se iniciado um processo de humanização e compreensão de que o artista que você vê na TV e no rádio é uma figura normal, com problemas e dramas, com quem você pode conversar”, sublinha. O que desanima o compositor é a atuação do governo federal e da secretária especial de Cultura, a atriz Regina Duarte.

Quando começou a produzir “Revivências”, que ainda agrega “Canções e Momentos” (Milton Nascimento e Fernando Brant), “Dança” (Chico César) e “De Frente pro Crime” (João Bosco e Aldir Blanc), Pererê não acreditava que o panorama político pudesse se deteriorar, mas admite que, infelizmente, ele estava errado. “Na época, já havia um desrespeito com a classe artística. Mas, hoje, a situação piorou numa intensidade que não dá para calcular. O que se tornou o (extinto) Ministério da Cultura era inimaginável”, lamenta ele, que tem para festejar a mobilização espontânea nas redes em torno da live deste sábado (23), que será transmitida em seu canal no YouTube, enquanto Pererê canta, na casa onde nasceu, “com a energia de como se fosse o primeiro e último show” da sua vida.

Fotos: Patrick Arley/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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