Moacyr Luz critica: ‘Culturalmente, nunca vi nosso Brasil tão abandonado’

*por Raphael Vidigal

“Tão lírica minha vida,
difícil perceber onde sofri.” Adélia Prado

Uma doença venérea no marinheiro do barquinho. Esse foi o conselho de Aldir Blanc (1946-2020) durante uma conversa de letristas, do qual Moacyr Luz nunca se esqueceu. O papo girava em torno da acidez lírica de Aldir, parceiro de Moacyr em mais – muito mais – de cem composições. “Chegamos até a conversar certa hora sobre isso, que era melhor a gente continuar batendo-papo do que fazendo música”, recorda Moacyr. “A gente falava do vizinho ao preço do frango no governo Collor. A gente queria ficar livre de compromisso”.

Moacyr morou 23 anos no mesmo prédio que Aldir, uma das 640 mil vítimas da Covid-19 no Brasil. “Você imagina a nossa relação, o Aldir é uma pessoa pra mim que, ainda hoje, acho que essa história de morrer não procede. Eu sinto uma falta dele como pessoa, como compositor, lógico, tenho parceiros brilhantes, cada um é um, mas ele é muito especial: Aldir Blanc…”, sublinha.

Encontro. Foi em um raro show de Aldir, que mal saía de casa, menos ainda pra cantar, que Moacyr conheceu Rogério Batalha, outro lírico, com quem ele assina as dez parcerias que compõem “Antes Que Tudo Acabe”, disco que acaba de ser lançado pela Biscoito Fino, já disponível nas plataformas digitais.

Na ocasião, Batalha entregou para Moacyr um livro de poesias, do qual ele extraiu a letra do samba “Malícia”, agora cantado por Douglas Lemos. Começava ali a parceria, que também rendeu homenagem ao bamba Wilson Moreira (1936-2018), autor de sucessos como “Gostoso Veneno”, lançada por Alcione, “Goiabada Cascão”, hit na voz de Beth Carvalho, e “Judia de Mim”, parceria com Zeca Pagodinho.

Homenagens. O tributo a Wilson Moreira ganhou o nome de “A Ciranda Que Inventei”, e a interpretação de Moyseis Marques, acompanhado pelo violão virtuoso de Carlinhos Sete Cordas, que participa de todas as faixas do álbum. Em “Samba da Cidade” (2003), em que desfilou composições com Martinho da Vila, Nei Lopes, Paulo César Pinheiro, Luiz Carlos da Vila e outros mais frequentes, Moacyr teve a honra de compor, com Wilson Moreira, o samba “Briga de Família”.

“Essa homenagem é o mínimo que ele merece, fiz vários shows com Wilson Moreira, e o Rogério Batalha caprichou nessa letra. Wilson era o mano velho. Saudade dele que deu agora, é muito bacana tudo isso…”, emociona-se Moacyr, que aproveita a deixa para estender o tapete vermelho a mais nomes.

“Em matéria de samba, o que tem de compositor pouco lembrado na música brasileira não é brincadeira”, lamenta, e enumera: “Do Trio Calafrio morreram o Barbeirinho e o Luiz Grande, dois geniais compositores. O Luiz (Grande) tem um sincopado e uma herança dessa história muito grande”, diz, em referência ao compositor de “Caviar”, eternizada na voz de Zeca Pagodinho.

Mulheres. “Perdemos Monarco, perdemos Wilson das Neves, perdemos Wilson Moreira. Eles são peças insubstituíveis desse xadrez chamado música brasileira”, prossegue Moacyr, que, apesar de manter o olhar no passado, não perde de vista o futuro, tanto que, segundo ele, a mulher ocupa cada vez mais espaços no samba. “É o que mais se vê hoje. Outro dia fiz um show no Cacique de Ramos e quem tocava surdo era uma mulher, tinha mulheres tocando pandeiro. Nessas escolas portáteis de música é o que mais tem”, diz.

Em “Antes Que Tudo Acabe” não é diferente. Marina Iris canta “Gratidão”. Branka dá voz a “Dona de Tudo”. “Pensando Bem” fica a cargo de Alice Passos, e Beth Dau abre os trabalhos com “Baluarte”, dos imponentes versos: “Estranhamente me desejas/ Em outras bocas e mal sabes/ Quando advogas meus desejos/ E consomes minha mocidade”. Para provar seu ponto, Moacyr novamente recorre à história.

“A mulher tem uma presença marcante no samba desde Aracy de Almeida cantando Noel Rosa, Dalva de Oliveira e aquela coisa toda com Herivelto Martins, Carmen Miranda…, aí vem Emilinha (Borba), Marlene, Lenita Bruno, Rosana Toledo, Lana Bittencourt…, até chegar Alcione, Beth Carvalho, Leci Brandão, Dona Ivone Lara, hoje com Teresa Cristina, Nilze Carvalho, Ana Costa, e todas essas meninas que estão no disco”, sustenta.

Samba. Moacyr se diz “muito orgulhoso e até emotivo” ao ver essa geração mais jovem cantando suas músicas, da qual ainda comparecem Humberto Effe, Mingo Silva, João Cavalcanti e os já citados. O próprio Moacyr se encarrega da pungente “A Tarde” (“Foi ferro em brasa te querer/ Matou a sede pra depois desamparar/ Foi mesmo de enlouquecer/ Lanhar, foi coisa de arrepiar”).

“Eu venho trabalhando há tanto tempo, e continuo trabalhando todo dia, compondo, buscando o que for mais interessante pra mim e para todos ouvirem. Eu sinto isso como um dever cumprido”, constata. A rotina do compositor não se altera. Ele acorda às seis da manhã e trabalha até meio-dia. Depois, fica livre pra beber. Todo esse gás poderá ser conferido em trabalhos vindouros com Fagner, Cristóvão Bastos e Marcelinho da Lua, sem largar de mão a “menina dos olhos”, o samba.

“Costumo falar uma frase que já repeti não sei quantas vezes. Se daqui a 100 anos o mundo acabar, vão restar as baratas e o samba”, vaticina. Moacyr certamente terá contribuído para isso. “O samba perde espaço, ganha espaço, ele tem uma soberania sobre os estilos, é a mãe da música brasileira, dos nossos ritmos. Tem uma importância vital pra nossa vida cotidiana. Não vejo essa coisa de ‘não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar’, porque tem sempre alguém plantando uma semente nova dessa história toda”, afirma.

Vacina. Diante da pandemia do novo coronavírus que vitimou milhares de brasileiros, a esperança passou a se concentrar na vacina. Moacyr, que também perdeu amigos para a doença, seguiu o bloco e compôs o “Samba da Vacina”, celebrando essa esperança. Ao mesmo tempo, criou os sambas-enredos com que a Mangueira e a Paraíso do Tuiuti irão desfilar na avenida em 2022. Mas o cenário político e cultural do país não o animam nem um pouco.

Aos 63 anos, Moacyr estreou nos palcos em 1977, o que contabiliza 45 anos de carreira. Tempo suficiente para “falar de cadeira”, como diziam os antigos. “Culturalmente, nunca vi o país do jeito que está…, um abandono, um desrespeito aos artistas e aos representantes da arte em geral”, protesta. Na capa de “Antes Que Tudo Acabe”, uma viçosa folha verde, salpicada pela garoa, se esfarela, torna-se seca e amarronzada. Imagem e título do álbum convergem com o diagnóstico de Moacyr.

“Na minha cabeça, esse ‘Antes Que Tudo Acabe’ já existia há muito tempo. Fazia uma música e pensava: ‘antes que tudo acabe’ vou fazer uma música então, né? Tem muito de mercado, de tendência, de não ter liberdade pra evoluir, isso na parte do disco. Na parte do Brasil, ‘antes que tudo acabe’ a gente tem que correr com urgência mesmo…”, finaliza.

Foto: Marluci Martins/Divulgação

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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