13 histórias das músicas de Aldir Blanc, autor de ‘O Bêbado e a Equilibrista’

“Quando ele nasceu, nasceu de birra
Barro ao invés de incenso e mirra
Cordão cortado com gilete

Quando ele nasceu sacaram o berro
Meteram faca, ergueram ferro
Exu falou: ninguém se mete!” Aldir Blanc

Provocado a escolher os 10 melhores sambas de todos os tempos, Aldir Blanc (1946-2020) não teve dúvidas. Adotou um critério pessoal e elegeu “Conversa de Botequim”, “Feitiço da Vila”, “Três Apitos”, “Último Desejo”, “O X do Problema”, “Onde Está a Honestidade?”, “Dama do Cabaré”, “Cor de Cinza”, dentre outros, todos de Noel Rosa. Por ironia do destino, com quem brincou em versos e trovas, Aldir morreu nesta segunda, 4 de maio, aos 73 anos, na mesma data que o Poeta da Vila, com mais de oito décadas de diferença. Diabético, o compositor, cantor e cronista carioca, criado no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, estava internado em uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva), após ter contraído o novo coronavírus, responsável por uma pandemia global. Aldir não tinha plano de saúde e conseguiu ser transferido para um hospital particular graças a uma vaquinha virtual realizada com a ajuda de amigos, familiares e fãs.

Dono de frases que se eternizaram na MPB e coautor de clássicos como “O Bêbado e a Equilibrista”, “Kid Cavaquinho”, “O Mestre-Sala dos Mares”, “Resposta ao Tempo”, e mais uma porção, Aldir formou-se em medicina e se especializou em psiquiatria, mas, já em 1973, trocou a profissão, definitivamente, pela música. O espírito crítico, aguçado e irônico, pode ser constatado na desenvoltura em preencher as ágeis linhas melódicas de João Bosco, o parceiro mais constante, e de levar ao cotidiano expressões que se equilibravam com graça entre o altar e o chão de fábrica. O próprio José Ramos Tinhorão, o mais feroz crítico da história da música brasileira, admitiu o talento de Blanc, em artigo que não dispensava a acidez usual, intitulado “O Melhor de João Bosco é Aldir Blanc”. A resposta veio musical. Em “Querelas do Brasil”, o sobrenome do crítico aparece ao lado de duas espécies venenosas de cobras: “tinhorão, urutu, sucuri”.

“Bala com Bala” (MPB, 1972) – João Bosco e Aldir Blanc
Poderia ser um choro clássico, dada a velocidade imprimida à música, não fosse a assinatura singular da dupla João Bosco e Aldir Blanc. “Bala com Bala” é, até hoje, um desafio para qualquer intérprete, encarado com domínio e desenvoltura por ninguém menos do que Elis Regina, que lançou a canção em 1972, no LP “Elis”. Naquele mesmo ano, Bosco e Blanc estrearam a parceria com “Agnus Sei”, gravada na primeira edição do Disco de Bolso, semanário do jornal O Pasquim que, do outro lado, trazia simplesmente “Águas de Março”, de Tom Jobim. Voltando a “Bala com Bala”, a música capta o instante de uma sessão de cinema e a felicidade do espectador diante daquele momento de ilusão, que logo será findo. Depois da gravação magistral de Elis, foi regravada por João Bosco.

“Cabaré” (MPB, 1973) – João Bosco e Aldir Blanc
Elis Regina é, até hoje, considerada por muitos a maior cantora brasileira de todos os tempos. Neste veredito aliam-se diversos fatores. Além da técnica apurada, do domínio de voz e gestos, da interpretação teatral e da entrega sem precedentes no palco, Elis sempre foi uma cantora ousada, inovadora, que buscava temas fortes e compositores novos. Graças a essa intenção, ela descobriu e selecionou, para o álbum de 1973, uma música do aspirante e já admirado por ela, João Bosco, em parceria com o veterano poeta Aldir Blanc. “Cabaré”, também gravada por Célia em outro registro primoroso, atina-se ao que há de obscuro e desconhecido em cada ser humano, esse enigma que, talvez, seja o grande responsável pela sedução, nas palavras de Milan Kundera, escritor tcheco de “A Insustentável Leveza do Ser”, a “promessa sem garantia”.

“Dois Pra Lá, Dois Pra Cá” (bolero, 1974) – João Bosco e Aldir Blanc
Nas décadas de 1940 e 1950, o principal gênero estrangeiro a dominar as rádios brasileiras era o bolero, vindo diretamente do México e com influência direta sobre o samba-canção. O projeto de dominação cultural norte-americana em breve se apropriaria do samba e de Carmen Miranda para reverter essa história. Prestando tributo ao bolero, João Bosco e Aldir Blanc compuseram “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, que, ao mesmo tempo, tirava sarro dos habituais derramamentos do gênero. Com habilidade única, Blanc consegue levar, para a letra, a elegância de um universo pautado pelas paixões lancinantes. Nunca, na música brasileira, alguém soube utilizar tão bem a palavra band-aid, no improvável verso “e a ponta de um torturante band-aid no calcanhar”. Ao lançar a música, em 1974, Elis Regina também deu a sua parcela de contribuição. A intérprete acrescentou, ao final da letra, versos em espanhol do bolero “La Puerta”, sucesso do cantor chileno Lucho Gatica, que teve regravações de Altemar Dutra e Nana Caymmi.

“Kid Cavaquinho” (samba, 1974) – João Bosco e Aldir Blanc
No início dos anos 70, por intermédio de um amigo em comum, João Bosco e Aldir Blanc foram apresentados. Era o início de uma das mais celebradas parcerias da música popular brasileira. No disco “Caça à Raposa”, lançado por João Bosco em 1975, as 12 faixas são assinadas pela dupla. Entre elas, surge “Kid Cavaquinho”, quase no final do álbum. Velocíssima, a música traz como protagonista um cavaquinhista que se vale do instrumento como arma de resistência. Mas há, também, lugar para o humor, como na célebre citação “Genésio, a mulher do vizinho/ Sustenta aquele vagabundo”. A canção foi lançada por Maria Alcina, em 1974, e regravada pelo cantor Alexandre Pires.

“O Mestre-Sala dos Mares” (samba, 1975) – João Bosco e Aldir Blanc
João Cândido Felisberto, conhecido como “Almirante Negro”, foi um militar da Marinha Brasileira que, em 1910, liderou a Revolta da Chibata, movimento que se rebelou contra os cruéis castigos, originários da época da escravidão, que continuavam a ser aplicados contra os marujos negros, mesmo após a abolição. Cansados de terem os seus corpos retalhados pela chibata, os marinheiros se revoltaram. Expulso, discriminado e perseguido pela Marinha, João Cândido morreu aos 89 anos, vítima de câncer, pobre e esquecido, no município de São João de Meriti, no Rio, onde se recolheu. Para saudar sua memória, João Bosco e Aldir Blanc compuseram, em 1975, o samba “O Mestre-Sala dos Mares”. A música foi lançada pelo próprio Bosco e regravada com primor por Elis Regina.

“De Frente pro Crime” (samba, 1975) – João Bosco e Aldir Blanc
Em 1964, impactada pela notícia que leu no jornal, Clarice Lispector escreveu uma crônica sobre os 13 tiros que mataram o ladrão Mineirinho, personagem que inspirou o filme “Mineirinho, Vivo ou Morto” (1967), de Aurélio Teixeira. No início da década de 80, Elis Regina interpretou “Onze Fitas”, música de Fátima Guedes, que dizia: “Onze tiros fizeram a avaria/ E o morto já tava conformado”. A indiferença diante da violência também inspirou João Bosco e Aldir Blanc. Em 1975, eles criaram “De Frente pro Crime”, que se tornaria um dos maiores sucessos da dupla. “Tá lá o corpo estendido no chão/ Em vez de um rosto uma foto de um gol/ Em vez de reza uma praga de alguém/ E um silêncio servindo de amém”, diz a letra. A música foi regravada pelo conjunto vocal MPB-4, em 1975.

“Querelas do Brasil” (samba, 1978) – Aldir Blanc e Maurício Tapajós
Apesar de ter morrido precocemente, com apenas 51 anos, Maurício Tapajós assinou importantes canções da música brasileira, dentre elas “Mudando de Conversa”, com Hermínio Bello de Carvalho, “Pesadelo” e “Tô Voltando”, ambas com Paulo César Pinheiro, e “Carro de Boi”, com Cacaso, gravada por Milton Nascimento. Não menos relevante é a parceria com Aldir Blanc em “Querelas do Brasil”, de 1978. Lançada por Elis Regina, no álbum “Transversal do Tempo”, a canção parte do icônico samba-exaltação de Ary Barroso, “Aquarela do Brasil”, para subverter o sentido. “Querelas do Brasil” é uma queixa diante da americanização cultural do país. Para combater esse processo, os compositores se valem do ritmo e da palavra, e resgatam inúmeras expressões tipicamente brasileiras, algumas de origem indígena, como “pererê, camará, gororô, olererê”.

“O Rancho da Goiabada” (MPB, 1978) – Aldir Blanc e João Bosco
“O Rancho da Goiabada”, música composta por Aldir Blanc e João Bosco em 1978, fala sobre a triste realidade dos boias-frias brasileiros e as dificuldades que eles encontram até para se alimentar. Para esses boias-frias, bife a cavalo, batata frita e “goiabada cascão com muito queijo” não passam de sonhos, e eles mal têm acesso a um digno prato de comida. Com a exuberância já conhecida de sua voz, Elis Regina canta o outro lado da fome, que, ao invés da fartura, traz a falta, e, ao invés da satisfação, reflete dor e sofrimento. Ao ouvirmos essa canção, o que podemos esperar é que, um dia, a beleza da voz de Elis Regina e a beleza da composição de Aldir Blanc e João Bosco possam também rechear o prato de todos os brasileiros, todas as pessoas do mundo.

“Linha de Passe” (MPB, 1979) – João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio
O trio João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio misturam todos os ingredientes a que têm direito para cozinhá-los no vasto caldeirão musical que compõe a música “Linha de Passe”, também de 1979. A ideia de juntar linguiça, paio, bolo de fubá, chimarrão, angu e mexilhão acaba dando muito certo e resulta em uma das receitas mais bem escritas, tocadas e cantadas da música brasileira. Cozida, assada, frita e bem temperada, “Linha de Passe” é de dar água na boca e fazer roncar o estômago de fome. A música acabou inspirando uma das mais famosas mesas-redondas do Brasil. O programa esportivo “Linha de Passe”, exibido pela ESPN Brasil teve, até 2016, José Trajano entre os seus principais debatedores. O comentarista esportivo foi amigo e vizinho de Aldir Blanc no bairro da Tijuca.

“O Bêbado e a Equilibrista” (MPB, 1979) – João Bosco e Aldir Blanc
Outro compositor alçado à fama por Elis Regina foi o mineiro de Ponte Nova, João Bosco. Ele já havia se encontrado e mostrado músicas, inclusive, para Vinicius de Moraes, mas foi o poder de elevação do canto de Elis que o colocou, em definitivo, no panteão da música brasileira. Além disso, João formaria, no Rio de Janeiro, uma das mais frutíferas parcerias da nossa canção, ao lado do carioquíssimo Aldir Blanc. “O Bêbado e a Equilibrista” narra, com contundentes e líricas referências a vítimas da ditadura, como a viúva do jornalista Vladimir Herzog, torturado e enforcado nas prisões do regime militar, e Herbert de Souza, o Betinho, identificado na letra como “o irmão do Henfil”, as asperezas e esperanças daquele período de chumbo. Ainda havia espaço para lembrar de Charlie Chaplin, o Carlitos, pobre vagabundo que amava a humanidade.

“Chá de Panela” (MPB, 1996) – Aldir Blanc e Guinga
“Chá de Panela” é uma homenagem da dupla Aldir Blanc e Guinga ao mais inventivo e irreverente compositor instrumental brasileiro. Hermeto Pascoal, conhecido por tirar som do impossível e até do possível é reverenciado nesta obra, pela qual o autor da melodia, Guinga, recebeu o “Prêmio Sharp” no ano de seu lançamento, em 1996. Aldir Blanc usa e abusa de sua habitual categoria e liberdade para rechear a letra ao sabor da criatividade de Hermeto. A música foi registrada por Leila Pinheiro no álbum “Cata-vento e Girassol”, todo dedicado ao trabalho de parceria entre Guinga e Aldir. Entre os ensinamentos de Hermeto que Aldir captura, salta aos olhos este: “Vi que música é tudo que avoa e rasga o chão”, entre outras deliciosas impropriedades. Belo uso da panela e do chá.

“Cegos de Luz” (MPB, 1996) – Ivan Lins e Aldir Blanc
Durante a ditadura militar, Ivan Lins e Aldir Blanc formaram, ao lado de Gonzaguinha, César Costa Filho e de outros colegas do ambiente estudantil, o MAU (Movimento Artístico Universitário). O grupo se reunia com frequência na casa do psiquiatra Aluízio Porto Carreiro para longas conversas e rodas de violão e pretendia, principalmente, ampliar o espaço para a música autoral no país. A amizade entre Ivan e Aldir perdurou até que, em 1996, eles criaram “Cegos de Luz”, gravada por Leila Pinheiro e regravada pelo próprio Ivan Lins. Juntos, Ivan e Aldir também criaram “Festas”, “Por Favor”, “Pequeno Circo Íntimo” e “Clareou”, esta última com a presença do sambista Moacyr Luz como parceiro.

“Resposta ao Tempo” (bossa nova, 1998) – Aldir Blanc e Cristóvão Bastos
A música “Resposta ao Tempo” concentra uma poesia altamente existencial e reflexiva de Aldir Blanc, aliada à melodia sofisticada de Cristóvão Bastos e à voz de mormaço de Nana Caymmi. Esse conjunto, por si só, a justifica como obra-prima. Não bastasse isso, essa típica peça de bossa nova, tema de abertura da minissérie “Hilda Furacão”, em 1998, tem como tema o “tempo”, um dos mais caros dilemas do ser humano, responsável por suas dúvidas, esperanças e medos. Por isso mesmo, ele adquire a condição de protagonista, numa conversa franca e honesta com o eu lírico, que determina: “No fundo é uma eterna criança/ Que não soube amadurecer/ Eu posso, ele não vai poder/ Me esquecer…”. E sintetiza, uma vez mais, o espírito desta parte da vida da qual sentimos saudade.

Raphael Vidigal

Fotos: Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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