Disfarçado de horror, ‘O Poço’ cutuca feridas sociais da humanidade

“- Podem me ouvir aí embaixo?
– Não os chame.
– Por que não?
– Porque estão abaixo… Os de cima não respondem.
– Por quê?
– Por que estão acima, óbvio.” Diálogo de “O Poço”

Justamente quando o Brasil enfrenta a Covid-19 e o bolsolavismo, ganha notoriedade na Netflix a produção espanhola “O Poço”, de 2020, dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia. O “timing” é perfeito porque a solidariedade, um dos temas discutidos na obra, anda em falta no atual contexto histórico, doente e doentio.

É difícil categorizar o filme em apenas um gênero cinematográfico. Na superfície, há fortes elementos de horror, mas há muito mais a ser dissecado nas entranhas da história. A premissa é instigante: em uma prisão vertical, com mais de cento e trinta andares (o número exato é importante, mas revelado apenas mais tarde na trama), uma plataforma repleta de comida desce pelos andares. A cada breve parada, os dois detentos de cada nível podem se alimentar à vontade, o que gera escassez nos andares inferiores.

A metáfora à nossa sociedade é óbvia, palavra que um dos personagens não se cansa de repetir. Se todos consumissem somente o necessário à sobrevivência, ninguém passaria fome. Goreng, o protagonista, após tomar conhecimento da lógica da prisão, faz essa observação ao colega de cela-andar, Trimagasi. A pergunta feita pelo colega, em resposta, não poderia ser mais consentânea aos nossos tempos: “Você é comunista?”. Em um tecido social voltado ao individualismo, razoabilidade e comunismo são confundidos. São comunistas todos aqueles que não rechaçam o Estado de bem-estar social ou não abraçam sem reservas o neoliberalismo. Também são comunistas os que ousam criticar um governo de extrema direita. E, claro, não gritar “Meritocracia!” é algo de preguiçoso esquerdista, óbvio.

Sobre Trimagasi, pode se dizer que está preso por ter sido convencido, pelo consumismo capitalista, de que sua felicidade dependia de ter um amolador de facas de que jamais precisara. Depois de adquiri-lo, o fabricante lançou no mercado outro produto que tornou obsoleto o tal amolador. Tomado pela fúria, Trimagasi provocou a morte de um imigrante, que, segundo ele, nem deveria estar ali.

Se o consumismo e a xenofobia são enfermidades intrínsecas ao comportamento humano, o socialismo imposto não parece ser o remédio para elas. Goreng, ao concluir que a ganância humana é imune a argumentos, resolve impor a solidariedade, pelo meio da força, nos níveis da prisão-sociedade, no intuito de fazer o alimento chegar aos andares inferiores. Solidariedade forçada é solidariedade? A igualdade compensa a violência e o extermínio? São questionamentos que permanecem com o espectador por muito tempo após o término da exibição.

Para além da tensão de classes, “O Poço” pode ainda ser assistido com a lente religiosa. Os primeiros planos do filme revelam o preparo da comida, ao som de violinos, em uma espécie de cozinha celestial. O deus-“chef” inspeciona com rigor o trabalho dos anjos-cozinheiros. O banquete deve sair impecável e farto para consumo. Afinal, Deus presenteou a humanidade com abundantes recursos naturais. Se há fome na Terra, a culpa é da humanidade gananciosa que não sabe repartir os presentes da natureza. Deus não tem nada a ver com isso.

O próprio Goreng, além de ser um personagem quixotesco (não por acaso, ele carrega consigo um exemplar de Dom Quixote de Miguel de Cervantes), é também visto como um tipo de messias, como ironiza outro personagem. Não deixa de ser curioso que a figura do Cristo também está associada a Imoguiri, segunda companheira de cela-andar de Goreng. Ela está na prisão por vontade própria e tenta convencer todos a praticar a solidariedade espontânea. “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele”, diz Imoguiri em certo momento.
Rico em subtextos sociais e religiosos, “O Poço” ultrapassa as convenções do horror e suscita relevantes reflexões em momento histórico obscuro pelo qual o Brasil e o mundo estão passando. Impossível sair incólume às provocações da obra.

Leandro Nogueira, roteirista e fã incondicional de “Laranja Mecânica” (1971) e de Stanley Kubrick

Fotos: Netflix/Reprodução.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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