Entrevista: Dóris Monteiro comemora os 80 anos em dó-ré-mi

*por Raphael Vidigal

“E é de você, é pra você, esta canção
É de você que vem a minha inspiração
Você é corpo e alma em forma de canção
Você é muito mais do que, em sonhos, eu já vi
Você é Dó, é Ré Mi Fá, é Sol Lá Si” Fernando César

No dia 23 de outubro de 2014, uma quinta-feira, Dóris Monteiro reuniu os amigos e familiares e comemorou o aniversário de 80 anos com “uma festa bonita e animada, um jantar, com muita alegria, foi ótimo”. Cantora de sucessos como “Mocinho Bonito” (de Billy Blanco), “Mudando de Conversa”, (de Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho), “Dó-ré-mi” (de Fernando César), e vários outros, Dóris se apresentou recentemente em Belo Horizonte, em agosto do ano passado, através do projeto “Salve Rainhas”, idealizado por Pedrinho Madeira, mas não mantém uma agenda frequente de shows, atendendo a convites esporádicos. “Quando canto e o público me aplaude eu fico nas nuvens, fico eufórica. Minha vida se transforma. Independente dos problemas que tenha, ao entrar no palco eu flutuo. A energia do público faz você cantar”, declara emocionada. Natural do Rio de Janeiro, onde ainda mora, Adelina Dóris Monteiro logo adotou os sobrenomes como alcunha artística.

Mas não pense você que Dóris não dá seus palpites no atual cenário da música brasileira. Sempre atenta, ela destila uma fina e mordaz ironia. “Outro dia levei meu cachorro ao Pet Shop e tocava uma música. Perguntei: ‘que cantora é essa?’. E me responderam que era o Michel Teló. Olha que fora que eu levei! Não escuto esse rapaz, só escuto coisas que eu gosto. Quando aparece uma dupla sertaneja na televisão já mudo de canal. É um direito que eu tenho. As pessoas geralmente não admitem que os artistas tenham suas preferências, nos impõe esse castigo. Por isso, quando essas pessoas me perguntam, eu sempre digo que gosto, mas nunca sei quem é”, confessa. Dóris deflagra, com a própria história, a falta de personalidade das atuais vozes. “Quando eu apareci, minha voz era diferente de tudo. Hoje em dia estão todas iguais, todas as cantoras. A não ser uma Leny de Andrade, a Leila Pinheiro, que são excelentes cantoras, mas já não pertencem a essa juventude”, conclui.

CANTEIRA
Aos 6, 7 anos de idade ela dizia que “queria ser ‘canteira’. Cantava brincando”. Um dia, quando entoava “Caminhemos”, sucesso na época, composição de Herivelto Martins, já aos 12 para 13 anos, Dóris foi ouvida por uma vizinha. “Estava cantando do meu jeito. E a dona Jurema disse: ‘essa menina tem uma voz tão gostosinha’. Eu não me parecia com Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Marlene, as irmãs Batista e o vozeirão delas que era moda na época. Nada, a minha voz era pequena e suave. Já adorava Lúcio Alves e Dick Farney, cantava ‘Caminhemos’ porque era o estouro do momento”, recorda. A vizinha aconselhou a mãe a levar a filha ao programa “Papel Carbono”, de Renato Murce, ao que “a minha mãe teve um ataque!”, relembra Dóris. “Disse ‘Deus me livre! Quero que a minha filha seja médica, advogada’. Rádio era visto como uma prostituição na época, coisa de malandro, lugar de bêbados, isso há 64 anos, eu tinha 16 anos, imagina!”. Mas Dóris tanto insistiu que conseguiu.

“Chateei minha mãe até ela me levar. Havia muito preconceito com o rádio. A gente só escutava. Chegando lá na Rádio Nacional o Renato Murce me disse: ‘a sua voz é diferente de tudo. O meu programa é o ‘Papel Carbono’, você tem que imitar alguém’”. Mas tudo virou quando a mãe de Dóris, que inicialmente era contra, retrucou de imediato que a garota, de ouvido, aprendera a cantar em francês. “Como precisava imitar uma cantora de sucesso na ocasião, apresentei ‘Bolero’, da francesa Luciene Delyle, na época muito aclamada”, conta. Com o feito, Dóris tirou o primeiro lugar da atração, e recebeu, a partir daí, vários convites para programas de calouros onde podia “cantar o que eu quisesse”. As influências que ainda permanecem logo apareceram. “Lá em casa não tínhamos dinheiro para comprar uma vitrola. Embaixo havia uma loja de discos, no que eu descia e pedia para o gerente colocar os ‘bolachões’ da Sarah Vaughan, do Nat King Cole, por quem era e ainda sou apaixonada”, diz.

BOSSA
“Quando a bossa nova veio fiquei radiante! Na verdade, gosto mesmo é de jazz”, define Dóris Monteiro. Além da influência da música negra americana, a entrevistada alicerça outros fatores que foram fundamentais para o êxito na carreira, como, por exemplo, a insistência. O gaúcho Alcides Gerardi, cantor de sucessos da década de 1950 como “Antonico” (samba de Ismael Silva) e “Baião de Copacabana” (de Lúcio Alves e Haroldo Barbosa), morava no mesmo prédio em que o pai de Dóris trabalhava como porteiro, e foi a senha para a garota concretizar a entrada no meio artístico. “Quando ele me via já fingia que não me conhecia e saía correndo. Infernizei a vida dele, que não queria de jeito nenhum que eu fosse cantora. Eu estava no 3º ano do colégio Pedro II e ele me aconselhava a estudar, porque dizia que o rádio era só decepção”, rememora. Mas Dóris tanto fez que conseguiu um teste na TV Tupi com o múltiplo artista Almirante, compositor, cantor e radialista, entre outras.

“Ele gostou muito! Disse que eu era muito afinada. Aí fui assinar contrato com alvará no juizado de menores. Tinha 16 anos. Minha mãe estava sempre comigo em qualquer viagem, todos os lugares. Não todos, porque na feira não precisava, mas todos os lugares artísticos”, esclarece Dóris. “Eu era muito garota e não me incomodava com dinheiro. Minha mãe foi quem me deu o senso de responsabilidade. De que minha palavra valia mais do que qualquer assinatura”, sublinha. Dóris Monteiro hoje vive no prédio em que o pai trabalhava como porteiro. Ao comprar um apartamento no local e melhorar consideravelmente de vida não se esquece das lições da mãe que, além de trabalhar como faxineira era uma portuguesa rígida. “Fui muito bem criada, mas com rigidez. O maior castigo era não poder ir à praia, nem me importava com as surras de chicote”, assume. Em 1951, a pequena Dóris Monteiro estourou o seu primeiro sucesso, “Se você se importasse”, de autoria de Peterpan.

CINEMA
A música que lançou Dóris ao estrelato ficou 5 meses em primeiro lugar. Logo em seguida aparecia um convite até ali inesperado na carreira da garota. O cineasta Alex Viany telefonou para Almirante na TV Tupi e expressou o desejo de contar com Dóris Monteiro em seu próximo filme. “Participei de oito filmes e ganhei o prêmio de melhor atriz por ‘Agulha no Palheiro’. Fizemos o teste nas Laranjeiras, e o Alex Viany foi muito gentil. Na verdade não houve teste porque ele me disse uma coisa que nunca vou esquecer: ‘Então amanhã gostaria que você estivesse aqui às 9 horas da manhã para tirar a medida das roupas’. Eu respondi: ‘Mas e o teste?’, ao que ele retrucou: ‘Não precisa, você é a pessoa certíssima pro papel’”, refaz o diálogo orgulhosa. Em 1954, Dóris grava “Rua sem sol”, também de Alex Viany, em que interpretava uma personagem cega e contracenava com a atriz Glauce Rocha e Carlos Alberto, entre outros atores de destaque. “Fui presenteada com uma página inteira na revista ‘Manchete’”.

“As reportagens diziam que eu era uma atriz de verdade, espontânea. Tudo meu acontece de uma maneira muito natural. Essa é uma sorte que Deus me deu”, faz questão de assinalar Dóris Monteiro. Ainda com relação ao primeiro encontro com o cineasta Alex Viany, Dóris relembra passagens importantes. “Ele me perguntou por que eu queria ser cantora, e respondi: ‘olha, foi uma coisa que aconteceu. Na minha família não tem ninguém cantor’”, pontua. “Meus pais eram pessoas humildes. Trabalhavam no prédio onde moro até hoje, fui criada aqui e depois comprei um apartamento. Sempre fui muito espirituosa. As pessoas ainda dão muita risada comigo”, afirma. Ao mesmo tempo em que fazia sucesso nas telonas, Dóris lançava outra música de sucesso, e totalmente diferente do que se ouvia na época. Em 1955, apareceria com “Dó-ré-mi”, um samba-canção de Fernando César. “Fiquei apaixonada, doida com a música! Trazia um alto-astral, uma alegria, uma paz!”.

FELICIDADE
“Naquela época as músicas só falavam de desgraça, traição, miséria, abandono, choro, e vem o Fernando César com uma música que falava de felicidade, que começava assim: ‘eu sou feliz…’”, cantarola. “Infelizmente o Fernando César não teve a mídia que merecia, era um autor maravilhoso, gravei um LP só com músicas dele”, lamenta e elogia. Mas a própria Dóris Monteiro desconfiou, a princípio, da capacidade do posterior pupilo. “O Chacrinha queria que eu o conhecesse, e eu disse: ‘como um sujeito que tem uma fábrica de sabão vai ter sensibilidade para escrever uma música delicada, amorosa?’. Esse era o estilo que eu gostava de cantar. Mal sabia eu, ainda bem que dei o braço a torcer e acreditei no Chacrinha”, admite. O encontro entre os três na casa do compositor trouxe para Dóris Monteiro além do conhecimento de um compositor sensível, e de diversos sucessos na carreira, uma amizade para a vida inteira com a esposa de Fernando César, Arlete.

“Fui muitíssimo bem recebida e nunca mais largue os dois de lado, gravei, em pouco tempo, ‘Joga a rede no mar’, também do Fernando César em parceria com o Nazareno de Brito”, atesta. Do outro lado deste LP histórico, havia outra preciosidade. “Se é por falta de adeus”, com arranjo de Tom Jobim para a estreia de Dolores Duran como compositora. Dóris não estava para brincadeira, embora suas canções carregassem o espírito da felicidade. E como alegria pouca é bobagem, rapidamente ela conheceu outro compositor fundamental em sua trajetória: Billy Blanco, que sugeriu para a cantora gravar “alguma coisa mais jogadinha”, recorda. A princípio, Dóris ficou reticente. “Pois tudo que eu gravava era romântico, mas ele me convenceu, dizendo que ia ser ótimo ter algo mais saltitante na minha discografia, e foi mesmo!”, celebra. À sátira “Mocinho Bonito”, sucedeu-se “A Banca do Distinto”.

PRECONCEITO
A canção de Billy Blanco era justamente uma resposta ao preconceito do tal sujeito que se referia à Dolores Duran como “a neguinha” . Dóris, que a partir desta data diz ter se “enturmado com o pessoal de Copacabana”, cantarola um trecho da canção: “Não fala com pobre, não dá mão a preto/Não carrega embrulho/Pra quê tanta pose, doutor?/Pra quê esse orgulho?”. E ainda admite a insegurança em se embrenhar por esse novo ritmo, mais sacudido. “Pensei: ‘vou tentar, se não der certo, não deu’. Mas deu muito certo. Até hoje nos shows fica tudo pedindo canções que gravei do Billy Blanco”, refere-se vaidosa. Outro encontro marcante na vida de Dóris Monteiro, e que se deu tanto na vida quanto nos palcos foi com o maior ídolo de infância, com quem ela nem nos sonhos imaginava cantar. “Lúcio Alves sempre foi para mim o maior cantor do Brasil. Não tem pra ninguém”. Os dois gravaram juntos um único álbum.

“O Almirante me chamou na TV Tupi para gravar o programa ‘Ela & Ele’, com o Lúcio Alves. Eu disse que não tinha condições de fazer porque iria desmaiar quando visse aquele homem. Mas aí o Almirante disse que quem mandava era ele!”, recorda, aos risos, e emocionada. “Sempre tive verdadeira loucura pelo Lúcio Alves, achava que erraria a letra de tanta emoção. Mas o Lúcio, que naquela época já era ‘O’ Lúcio Alves, foi tão bacana, tão humilde. Disse que se sentia honrado em cantar comigo”, suspira. O programa, assim como a canção “Mudando de Conversa” (de Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho), logo elevaram a dupla à condição de ‘queridinhos’ do cenário nacional. “Gravamos o disco oriundo da nossa participação no ‘Projeto Pixinguinha’. Aliás, nem estávamos escolhidos para participar do projeto”, afirma Dóris. Mas é uma história que merece ser relembrada. “O projeto era feito por uma patota, uma panelinha, e tínhamos ficado de fora, mas aí encontrei o Ney Braga”.

COINCIDÊNCIA
Carmelita, Lígia e Dóris saltavam do bonde e iam a pé para o colégio. Ney fazia o mesmo caminho para o Ministério e, por acaso, seguia a três. Anos depois, essa coincidência serviu para colocar Dóris Monteiro e seu ídolo de infância no famoso “Projeto Pixinguinha”. “Quando fui receber o troféu de melhor atriz em Curitiba o Ney Braga, que depois passou a ser Ministro da Cultura, era governador do Estado. O Herivelto Martins também estava nessa cerimônia. Não me lembrava dele. Mas ele lembrava de mim. Um dia foi até a casa dele a pedido de amigos, para ele assinar um documento para a SOCIMPRO, e me perguntou o que eu queria de volta. Na hora não pensei em nada, mas um tempo depois me lembrei do projeto, e disse: quero participar do ‘Pixinguinha’ com o Lúcio Alves. Ele imediatamente pegou o telefone e ordenou que fossem criadas onze duplas ao invés de dez, afinal era ele que fazia a distribuição do dinheiro”, lembra. “A partir dessa data ficamos muito próximos”, alicerça Dóris.

Além de se referir a Dóris como “minha rainha”, Ney era também um contumaz apreciador da sopa da mãe da cantora. Ainda sobre o episódio acima, Dóris completa: “O pessoal que escolhia os participantes do ‘Projeto Pixinguinha’ deve ter ficado com ódio de mim e do Lúcio. Eram todos gays, mas eu nunca estive nem aí para isso, queria era participar do projeto. Era uma coisa muito bem organizada, parecia americana. Fingi de surpresa quando me avisaram que eu iria participar. O Lúcio deu tanta risada. Depois de um tempo ficaram todos nossos amigos. Devem ter pensado: ‘Não adianta brigar, né? São amigos do chefe’”, gargalha Dóris. Em razão do “sucesso danado”, Dóris passou a ser escalada “em todos os ‘projetos Pixinguinha’”. Numa outra participação, cantou com Carlinhos Vergueiro. Já o LP com Lúcio Alves teve direção de Hermínio Bello de Carvalho e arranjos a cargo de seu marido, Ricardo Júnior. “Passei a cantar melhor com ele, é um tecladista fenomenal”.

BALANÇO
Ricardo Júnior tem importância fundamental tanto na vida quanto na carreira de Dóris. Hoje, quando se apresenta, é sempre ao lado do marido, a quem dedica generosos elogios. Mas não é o único. Com Miltinho, Dóris Monteiro registrou 4 discos durante a década de 1970, sempre intitulados “Dóris, Miltinho e Charme”. “O Miltinho gravava com a Elza Soares, mas ela e Garrincha foram perseguidos pela ditadura, até hoje não sei o porquê, e se exilaram na Itália”. Por esta feita o diretor artístico da gravadora Odeon na época, também chamado Milton Miranda, convidou Dóris para estabelecer a nova parceria. “Eu hesitei, achava que não tinha nada a ver, pois o Miltinho é puro balanço, suingue. Mas, como sempre, fui convencida”, admite. Dóris descobriu que também tinha suingue e recorda com saudade a maneira carinhosa com que Miltinho se referia a ela. “Ele só me chamava de Monteiro. Dizia: ‘Ô Monteiro, vamos gravar esse disco, como você vai?’”. Apesar de lamentar a perda recente do amigo, Dóris acredita que, nesse momento, “foi melhor para ele. Já não podia cantar, ninguém o convidava”. E se recorda de outro amigo, com quem gravou o último disco de carreira. “O Tito Madi sofreu um AVC e está de cadeira de rodas. Eu sou a única que ainda telefona para ele, é muito triste”, lamenta. Mas ao final, o balanço é positivo, e Dóris permanece na imagem de um dó-ré-mi. “Eu sou feliz, tendo você, sempre a meu lado/E sonho sempre, com você, mesmo acordado…”.

DISCOGRAFIA
1951 a 1959 – 24 discos de 78 rotações
1956 – Confidências de Dóris Monteiro com Músicas de Fernando César
1957 – Dóris Monteiro
1959 – Dóris
1960 – Vento Soprando
1961 – Dóris Monteiro
1962 – Gostoso é Sambar
1964 – Dóris Monteiro
1966 – Simplesmente
1969 – Mudando de Conversa
1970 – Dóris Monteiro
1970 – Dóris, Miltinho e Charme
1971 – Dóris
1971 – Dóris, Miltinho e Charme, volume 2
1972 – Dóris, Miltinho e Charme, volume 3
1972 – Dóris
1973 – Dóris
1973 – Dóris, Miltinho e Charme, volume 4
1974 – Dóris Monteiro
1976 – Agora Dóris Monteiro
1978 – Dóris Monteiro e Lúcio Alves no Projeto Pixinguinha
1981 – Dóris Monteiro
1992 – Dóris Monteiro e Tito Madi

Doris-Monteiro-Entrevista

Fotos: Divulgação e Arquivo.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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