Lúcio Alves: moderno, cantor foi elo entre a bossa e o samba-canção

*por Raphael Vidigal

“Era como se o mundo onde se juntavam fosse um navio, um navio preso em calmaria entre as duas ilhas que eram eles dois: com esforço, ele conseguia ver a margem dela, mas a dele se perdia em meio à espessa bruma.” Truman Capote

Lúcio Alves, a voz das brumas, das manias, da solidão e da amargura. A voz de um sábado ensolarado em Copacabana. Desde os 14 anos, sua voz já embalava os corações apaixonados dos “Namorados da Lua”. Uma voz grave que parecia sair das narinas e perfumava os ares cheios de dor e vida. Uma voz grave que cantava os dramas do samba-canção e as saudações otimistas da bossa nova que nascia. Uma voz grave, porém terna e macia. Para o “cantor das multidinhas”, a canção será sempre imensa, e o amor uma multidão de dores e alegrias.

“Agora É Cinza” (samba, 1934) – Bide e Marçal
Alcebíades Maia Barcelos, mais conhecido como Bide, nasceu no dia 25 de julho de 1902, e morreu no dia 18 de março de 1975, aos 72 anos. Um dos fundadores da escola de samba “Deixa Falar”, Bide foi o responsável por introduzir o surdo e o tamborim no acompanhamento dos sambas, livrando o gênero da influência do maxixe e tornando-o mais brasileiro. Bide formou uma parceria de sucesso com Marçal, com quem compôs clássicos da música brasileira, como “Agora É Cinza”, samba lançado por Mário Reis em 1934, e regravado por Lúcio Alves, Wilson Simonal, Elza Soares, Roberto Silva, e etc…

“Se Acaso Você Chegasse” (samba, 1938) – Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins
Escrito por Lupicínio Rodrigues em parceria com Felisberto Martins em 1938, o samba “Se Acaso Você Chegasse” fez sucesso com Ciro Monteiro. Na estreia em disco de Elza Soares, no ano de 1959, a peça ganhou o contorno da voz jazzística da cantora, substituindo frases do refrão por sonetos sonoros que deixam no ar a real intenção dos personagens. À história de amor desfeito e da amizade posta em perigo de Lupicínio Rodrigues, Elza adentrou com intimidade e atrevimento, sem perder a dor-de-cotovelo. A música se configurou no primeiro sucesso da intérprete, e recebeu regravações de Nelson Gonçalves, Noite Ilustrada, Lúcio Alves, Roberto Silva e Adriana Calcanhotto…

“A Vizinha do Lado” (samba, 1946) – Dorival Caymmi
“A Vizinha do Lado” é um samba com sotaque carioca em que Dorival Caymmi almeja a tentação proibida: “A vizinha quando passa com seu vestido grená, todo mundo diz que é boa, mas como a vizinha não há. Ela mexe com as cadeiras pra cá, ela mexe com as cadeiras, pra lá. Ela mexe com o juízo do homem que vai trabalhar”. Lançada em 1946 pelo próprio autor, recebeu regravações de Chico Buarque, Lúcio Alves, Vânia Bastos e Roberta Sá. Cheia de uma malícia charmosa, a canção entrou para o cobiçado panteão da MPB…

“De Conversa em Conversa” (samba, 1947) – Haroldo Barbosa e Lúcio Alves
Lúcio Alves, um dos ícones da música brasileira da chamada fase de transição entre os derramamentos do samba-canção e a suavidade da bossa nova compôs, quando tinha apenas 16 anos, uma melodia inicialmente intitulada “Não Sou Limão”, e foi dessa maneira que ela seria lançada no rádio, com o acompanhamento dos Namorados da Lua. Já com a voz de Isaurinha Garcia, a música com letra de Haroldo Barbosa teve o batismo trocado para “De Conversa em Conversa”, um samba descontraído sobre uma separação de amor. Ao lado de Dóris Monteiro, Lúcio Alves interpretou essa preciosidade de 1947, no Projeto Pixinguinha, que consagrou a dupla e seu estilo bossa-nova.

“Sábado em Copacabana” (samba-canção, 1952) – Dorival Caymmi e Carlos Guinle
Já morando no Rio de Janeiro, o baiano Dorival Caymmi logo se encantou pela cidade e compôs junto ao carioca Carlos Guinle uma ode ao bairro de Copacabana, com dicas para os casais apaixonados. “Um bom lugar para encontrar, Copacabana/para passear à beira-mar, Copacabana/depois num bar à meia-luz, Copacabana/eu esperei por essa noite uma semana/um bom jantar depois de dançar, Copacabana/um só lugar para se amar, Copacabana”. Lançada por Lúcio Alves, a música teve uma bela regravação de Dick Farney.

“Tereza da Praia” (samba-canção, 1954) – Billy Blanco e Tom Jobim
Billy Blanco e Tom Jobim eram então dois rapazes quando foram encarregados de compor a “Sinfonia do Rio de Janeiro”, que contou com a participação de Elizeth Cardoso, Emilinha Borba, Nora Ney, Jorge Goulart, ‘Os Cariocas’, Dóris Monteiro, Dick Farney, os arranjos de Radamés Gnattali e outros. O sucesso foi tanto que a gravadora ‘Continental’, da qual faziam parte, logo os convocou para outro projeto ambicioso: criar uma canção que unisse Lúcio Alves e Dick Farney, tidos como rivais pelos fãs mais exaltados. Assim surgiu “Tereza da Praia”, uma das mais emblemáticas canções do período pré-bossa nova e que soube traduzir, como poucas, o charme e a simbiose entre Lúcio e Dick Farney. Lançada em 1954, teve regravação da dupla Caetano Veloso e Roberto Carlos.

“Valsa de Uma Cidade” (valsa, 1954) – Antônio Maria e Ismael Neto
Cantarolando, Antônio Maria fazia suas músicas. Melodia e letra, num único gesto de língua e paladar. Era questão de sentir o gosto, e tatear no escuro o clima apropriado ao sentimento que se queria dizer. Mesmo assim, sem executar com exatidão nenhum instrumento musical concebido como tal, era tido por ‘o homem de 7 instrumentos’, devido à habilidade assustadora de se impor em várias funções da imprensa e principalmente da escrita. No entanto, mesmo em vista de enormes sucessos provocados por sua incursão solitária no mundo da composição, não foram raras as vezes em que foi ao encontro da companhia de um amigo.

Ismael Neto era um desses, com quem esculpiu, entre outras, ‘Valsa de uma cidade’, ode alegre e entusiasmada para o Rio de Janeiro que teve que aprender a solavancos e sopapos a respeitar e amar, Antônio Maria, um de seus compositores mais requisitados nas noites de orgia. E a valsa é uma exaltação solar, mas como não poderia deixar dizer encerra em mágoa amorosa, onde ele observa estar o amor em tudo. Lançada em 1954 por Lúcio Alves, regravada por vários outros e outras.

“Ideias Erradas” (samba-canção, 1959) – Dolores Duran e José Ribamar
Mulher. Mulata. Estudou só até a quinta série. Vinha de origem humilde e nascera no último ano da década de 1920. As probabilidades jogavam contra a menina Adiléia Silva da Rocha, que, antes de morrer, pouco depois da chegada, em 1959, colecionou sucessos e foi boa vendedora de discos durante a vida. Autodidata em cinco idiomas, além de possuir um português perfeito, a garota adotou o nome artístico de Dolores Duran, alcunha cabível à estrela que viria a ser. Entre os inúmeros sucessos da pioneira compositora brasileira temos “Ideias Erradas”, parceria com Ribamar lançado por Lúcio Alves. Luxo…

“Este Seu Olhar” (samba-bossa, 1959) – Tom Jobim
Toquinho, que foi parceiro de Tom Jobim na turnê que reuniu Vinicius de Moraes e Miúcha, e que resultou no antológico álbum gravado no Canecão (RJ), em 1977, diz que quando a música começou a entrar na sua vida, mesmo antes da Bossa Nova, Tom já vinha incorporado nela em canções que ele ouvia nas vozes de Agostinho dos Santos, Maysa, Dick Farney, Lúcio Alves. “Toda a minha geração aprendeu com Tom. Sua música é genial e supervalorizada no mundo todo”, destaca. Dick Farney, por exemplo, regravou com êxito o samba-bossa “Este Seu Olhar”, lançado pelo cantor Luiz Cláudio no ano de 1959.

“Mudando de Conversa” (samba, 1968) – Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho
“O Almirante me chamou na TV Tupi para gravar o programa ‘Ela & Ele’, com o Lúcio Alves. Eu disse que não tinha condições de fazer porque iria desmaiar quando visse aquele homem. Mas aí o Almirante disse que quem mandava era ele!”, recorda, aos risos, Dóris Monteiro. “Sempre tive verdadeira loucura pelo Lúcio Alves, achava que erraria a letra de tanta emoção. Mas o Lúcio, que naquela época já era ‘O’ Lúcio Alves, foi tão bacana, tão humilde. Disse que se sentia honrado em cantar comigo”, suspira. O programa, assim como a canção “Mudando de Conversa” (de Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho), logo elevaram a dupla à condição de “queridinhos” do nosso cenário nacional.

Lido por Acir Antão na rádio Itatiaia em 30/01/2011 e 29/01/2012.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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