Disfarces

“Il y a toujours
quelque chose d’absente
qui me tourmente.” de Camille Claudel para Rodin

Gustav-Klimt

Nuca no bafo. Não se olham. Palavras intactas na garganta. Árida, rareando seca saliva dentro’boca. Incômodos, sérios, prosseguem caminho no silêncio itinerante.

Levanto-me depressa. Tonteira me arremessa. Rascunho um poema. Já foi embora (o outro). Pensei.

Mas não escrevi. Já não sinto orgulho nenhum. Humildade nenhuma. E sou só esse resto em meio ao meio que restou. Concreto caoticamente caibo na liquidez da vida.

Disfarçado em roupas entulhadas umas sobre as outras. Passei-me por rosto. Eu que sempre fui só: corpo. Assombrado com o violão de Garoto, que vinha do quarto ao lado, remexi funduras imersas, soterradas em dias de quente sol e luas alteradas pela imaginação que é sortilégio imposto aos namorados.

Meu (pão) francês sabota o pendor pernóstico aportuguesado. Sal do queijo disfarça a falta de sabor do peixe. Exprimo como quem espreme limões. Saio escorrido como duma panela de macarrão. Entre meus dedos há azeite. Na mesa todos sugam o prato bem temperado com molho de meus amores, tremores, abandonos. Alamedas. Ah! Meus medos. E nem sequer há compaixão pelo próximo. Palavra pedida, riscada dos dicionários.

Quando foi embora, veio-me tremor nas pernas. Torcendo para que fosse uma abertura no chão passageira, logo percebi em meio a miragens os pássaros que alegraram nossos sábados, enterrados naquele abismo de lilás torturado, já roxo, enegrecendo.

Disfarce. Sirva-me um besouro jovem. Foram os conselhos mais necessários que ouvi. E a NE-CE-SSI-DA-DE sempre foi uma inimiga minha. Eu sempre tentei dizer e mostrar às pessoas a INUTILIDADE dessa loucura sorrateira que nos aplaca sem cartório ou identidade. Se o que buscamos foi quase sempre essa identidade, o que fazer do outro quando o outro agora que o outro nos rouba (TARDE) a face? Eu que sempre fui só: corpo.

Repetindo frases inteiras, ditos seculares, no amargor dos anos dos tempos das passagens de pessoas que vão e voltam e zap! Enterram-se sob árvores. Olham-nos através de lápides: e só o nome nos encara, covardes. “Morrer é ser exposto aos cães covardemente” Maura Lopes Cançado.

Aplacando a rebeldia. Mais chega de mas, e ninguém ainda disse ao que se submeter quando essa morte é voluntária, planejada, organizada com a frieza das mãos de veludo que acertam e enrolam as cordas da forca sagrada.

Esmorecer ao prosaico infortúnio de viver uma vida a dois, dividir, repatriar, repartir. Enumerar qualidades prioritárias. Estabelecer dias e horários a se morrer primeiro viver depois. Usando um ao outro em benefício próprio. Preenchendo o ócio, aliviando os momentos de prazer, alargando a tensão, me dizia sempre.

Você doente, eu do lado. Eu doente, você do lado. Cobrando um minuto de atenção, ali na cama do hospital, cercado de cercas brancas bem limpinhas e isolantes. Na mania redonda tênue fluida de se estabelecer no limbo. Ficar por lá olhando gatos nas ruas, miando inutilmente, e decidir perante as fraquezas não assumir o oco frívolo entre os nós.

Condenados a olhar para baixo; avistas larvas; grossas vistas para a nuvem que eu sei, carregada de chuva, forma e suicida o véu cinza despencado em amor e angústia. Fomos e seremos servos do amor e angústia. Frios, não sobrevivem ao calor.

Peço-lhe que acolha-os, nos momentos de doença, e os abandone na saúde plena, para que vivam seus anos vindouros e vigorosos longe daqui, libertos dos protetores da grande enchente.

Molha-se as plantas. Molha-se então os cabelos. Porque não molhar a alma? Melhorar a alma? Melhor pr’alma? ‘Eu sei, não me diga, esquecer as promessas e mantê-las vivas…’ me canta um Jards Macalé no aflitivo ouvido. Como o besouro servido aquela manhã. De cabeça para baixo, agoniza… as antenas sacodem as patas sacodem os membros sacodem a barriga… vazia…

Nem sequer se olham. Palavras intactas na garanta. Repetidas umas para as outras em sinais de desgosto, auto-suficiência, desprezo e arrogância. Se todas as alterações caminham para o ódio e sufocando vão os sentimentos cristãos, há de ressaltar sobre a gramática a doce liberdade da poesia pútrida.

Arrastando sua beleza contida, você se culpa. Tem razão, não totalmente. Mas é bonito o modo como pensa sua sensibilidade. E eu me apaixono. Também tenho culpa, mas não a uso. Num furacão.

Houve naquela manhã um azedo entre os dois. Retiraram as células que dividiam suas correspondências. Cartas marcadas para morrer. No dia seguinte ou quem sabe na eternidade. Não sobreviveram. Não sobreviveriam a nada. Sabiam-se marcados, envoltos pelo magma do vulcão exposto.

Jogaram as cartas. Leram a borra do café. Tiraram a sorte do outro. Quebraram juntos o vidro e se lançaram. Enquanto e quanto for possível (instaurado ou permitido?). Deram os braços, as mãos ainda enlaçadas. O último gesto confraternizado, e só na morte absorveram solidariedade.

Viver é morrer desesperadamente.

A minha arma sempre foi a literatura, nunca os braços.

Mas eu sempre escolherei você.

Gustav-Klimt-beijo

Raphael Vidigal

Pinturas: “O cumprimento”; e “O beijo”, de Gustav Klimt.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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