Artes Plásticas: Camille Claudel

“Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar…” Fernando Pessoa

Escultura Valsa

A onda traz até mim um cachorro. Tem olhos cor de rosa, língua pra fora a singrar os mares. Não vai haver facilidades, encontro-me num parto complicado. Anestesia não esconde a culpa de parir o que sou e não veio, nem existe na rede nem espada em riste. Pescadores jogam promessas.

Vago. Levanto-me. Mistério das missas. Miríades dos rejeitados. Erguido da rocha de sais. Sou eu a escultura de Camille Claudel. Perdão ou cura no papel, assinada pelo médico com broca. Hospício de minhas loucuras. Sanidade das minhas mártires. Erro e crio o novo. Procrio gazela no cio da mata come-me fogo, argila-lama, mata.

Tudo o texto destrói. E nele vou me reconstruindo. Produto do feno feito a palha, Sol. Apareço-me então no enforquilho. Dê paciência fralda anzol para o que nasça. Vimes, véus, velhinha sentada, viço do outono, vergo Camille Claudel. Nativa a medrar.

Me tirou do caroço. Desterrou as ventes que cobriam frementes minhas gorduras, vergonhas, óleo, cal, pó, cimento, azeite. Amassou os peitos com unhas. Enfiou posteridade n’alma. Jarros de leite fresco encontrou na manilha que rodou rodou rodou a reconciliar vida.

Age o cansaço sob vestido, sacola a ronronar no vento o tempo passando, maldito. Abaixou-se, recolheu brisa na testa e a emprestou a minhas verrugas, vacilações, empurrões, emperrando-se o carro de boi cheio da cheia do rio. Rodas deslizaram por sob os pés. Como anjo vim à guarida.

Do dentro, lembro-me órgãos. Pulsando tremendo sorvendo saltitas auréolas alvéolos aréola do seio a espirrar o gérmen, escrutinando sabedorias. Líquido poro aberto chaga. O de fora mera retaliação sovina ao calabouço da chave perdida. Onde ficou o preço que alguém pagou? Por mim? Por me ter? Pelas nossas divididas dividendos dívidas. Entorta essa dor que lhe tange.

Camille. Um suspiro de repugnância. Uma volta interminada. Ânsia dos louvores na igreja. Ao altar. Bispo das minhas virtudes, diz-me onde foi que perdi a virada encoberta pela maré, subiu demasiada ao alcance de leis frágeis. Cai chão. Natureza de um ser – humano – captada em escultura. Quais caminhos levaram-me até a ribeirinha? (O fim prognóstico indiscutido) Quero ir antes de você.

Rodin destroçou os enigmáticos castelos que ela havia dentro em vitral luminoso brilhando chamou coração das trevas. Morcegos eram pássaros, cavalos copulavam éguas, ramos de flores selvagens silvestres floresciam ao cantar da alvorada aurora coberta. Mas o se passou definiu-se leiva.Céu de seda senda somava sina dócil doença destino dorida.

Coração inquieto derruba-se a pedra, vertem-se regalias, gesso, mármore, bronze, caixinha de ouro e marfim. É guardá-la. Compreendê-la. Camille Claudel.

“Il y a toujours
quelque chose d’absente
qui me tourmente.” de Camille Claudel para Rodin

A onda Camille Claudel

Raphael Vidigal

Esculturas: “Valsa” e “A Onda”, de Camille Claudel.
 

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7 Comentários

  • Olá, Raphael,

    uma poesia dessas não pode ser lida apenas uma vez ou comentada apenas por comentar. Aliás, nenhum texto de boa literatura, como esse.

    Mesclando fragmentos de realidade, sua poesia pode soar estranha, mas de forma alguma é banal ou sem reações.
    Voltarei aqui mais vezes.

    Abraços,

    Miguel Lopes

    Resposta
  • Muito obrigado pelas palavras, Miguel. Fico honrado. Volte sim, sempre. Grande abraço!

    Resposta
  • ?”Do dentro, lembro-me órgãos. Pulsando tremendo sorvendo saltitas auréolas alvéolos aréola do seio a espirrar o gérmen, escrutinando sabedorias. Líquido poro aberto chaga. O de fora mera retaliação sovina ao calabouço da chave perdida. Onde ficou o preço que alguém pagou? Por mim? Por me ter? Pelas nossas divididas dividendos dívidas. Entorta essa dor que lhe tange.”

    E o Raphael Vidigal segue escrevendo extremamente bem na sua Esquina Musical!

    Resposta
  • Mt bom. Eu não sou uma profissional no assunto, aliás, conheço bem pouco de poesias, mas quando é bom não precisa conhecer, a gente sente tocar a alma. Parabéns!!!

    Resposta
  • Esculturas belíssimas…
    Seu texto, cada vez melhor, é puro sentimento. E muito me emociona…
    Parabéns, Raphael! Beijos…

    Resposta
  • Obrigado a todos que comentaram pelo carinho e atenção dispensada! Voltem sempre. Abraços

    Resposta

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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