“pariso
novayorquizo
moscoviteio
sem sair do bar
só não levanto e vou embora
porque tem países
que eu nem chego a madagascar” Paulo Leminski
Com o mundo em convulsão devido às guerras no Oriente Médio, abastecidas pelas grandes potências, tais como Estados Unidos e o continente europeu e que, segundo relatórios da Anistia Internacional, continuam enviando armas para a região, onde há grande quantidade de petróleo, põe-se novamente à prova questões sobre a solidariedade humana e o modo como se comportar no mundo. Mais do que isto, a tolerância à diversidade é um tema que desafia a espécie e seus pares. A crise dos refugiados alimenta migrações em todo o planeta. Cinco músicas compostas por pessoas das mais diferentes tribos demonstram como é possível ter um ideal comum, propor a união e enriquecer a existência a partir da congregação; de culturas, instrumentos e vozes.
Black is beautiful (soul music, 1971) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Em plena ditadura militar no Brasil, no ano de 1971, os irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle lançaram um hino à beleza e força dos negros. Para tanto, fizeram uso de um dentre os inúmeros ritmos identificados com a causa, a “soul music”. Neste mesmo ano Elis Regina, como era de costume quando interpretava qualquer canção, acrescentou ainda mais charme e vigor à música. “Black is beautiful” reage com indignação e coragem a todo o histórico de discriminação contra os negros, os estereótipos e condições petrificadas pela escravidão, e arremata com versos de erotismo e sensualidade pungentes: “Eu quero um homem de cor, um Deus negro, do Congo ou daqui, que se integre no meu sangue europeu…”.
Qualquer coisa (tropicália, 1975) – Caetano Veloso
De maneira bastante enviesada, como era habitual na tropicália, movimento capitaneado na música por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, dentre outros, o baiano de Santo Amaro, irmão de Maria Bethânia, presta uma homenagem aos povos árabes que deixaram em terras brasileiras ditados que se acoplaram à linguagem, e se tornaram, pela própria natureza, muito populares. Este recurso é facilmente notado quando Caetano mistura e reinventa frases, partindo do pressuposto do próprio movimento onde sua música está inserida, a tal antropofagia, a formação mestiça de toda a nação brasileira. “Esse papo já ta qualquer coisa, você já ta pra lá de Marrakesh, mexe qualquer coisa dentro doida, já qualquer coisa doida dentro mexe…”.
O Brasil vai ensinar o mundo (balada, 1989) – Cazuza e Renato Rocketh
Na última faixa, do último lado, do último disco de Cazuza, o poeta exagerado deixa uma mensagem de acolhimento e esperança tanto para o mundo quanto para o Brasil. “O Brasil vai ensinar o mundo”, parceria com Renato Rocketh, foi gravada em 1989, mas só lançada um ano após a morte de Cazuza, em 1991, no disco póstumo “Por Aí…”. O autor de “Ideologia” prega justamente a troca e interação entre as culturas para a melhoria de todos os lados. Já com uma voz cansada, o poeta ainda tem tempo de deixar aquele que talvez seja seu recado mais importante e que precisa, cada dia mais, ser escutado: “O Brasil vai ensinar o mundo, a convivência entre as raças, preto, branco, judeu, palestino, porque aqui não tem rancor, e há um jeitinho pra tudo. (…) O Brasil tem que aprender com o mundo, a ser menos preguiçoso, a respeitar as leis, e eles têm que aprender a ser alegres…”.
Paratodos (MPB, 1993) – Chico Buarque
Não há exemplo maior de riqueza e diversidade cultural do Brasil do que a música “Paratodos”, lançada no disco homônimo de Chico Buarque em 1993. E não é por acaso. Chico carrega a herança desde o pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, que cunhou o controverso termo “homem cordial” para o brasileiro, mas é, sobretudo, por sua arte que o compositor se destaca nessa seara. Chico é capaz de reforçar a tradição sem perder o olhar para o contemporâneo, é o famoso “um olho no gato, o outro no peixe” que contempla os clássicos. Se há no Brasil muitas culturas diferentes, é essa sua maior riqueza. A diversidade, a gama de cores, a explosão de sotaques e expressões, cada Brasil é um Brasil, e todos são musicais. “O meu pai era paulista, meu avô pernambucano, o meu bisavô mineiro, meu tataravô baiano, meu maestro soberano, foi Antônio Brasileiro…”.
Inclassificáveis (rock, 1996) – Arnaldo Antunes
Arnaldo Antunes encerra a discussão teórica sobre a denominação racial do povo brasileiro com sua poesia concreta. No ano de 1996, em rock que por si só explica a conversa. “Inclassificáveis” é o nome da canção lançada no álbum “O Silêncio”, e regravada por Ney Matogrosso em 2008, quando usou a música para intitular seu disco. Arnaldo parte das três raças que inicialmente mestiçaram e mistificaram o Brasil, “preto, branco e índio”, para alcançar a gama de culturas e cores que resultou desse congraçamento, “mulatos, mestiços, cafuzos, pardos, mamelucos” até os inventados pelo próprio autor “crilouros, guaranisseis, judárabes, orientupis”, e expressões populares cunhadas pelo povo, “sararás e caboclos”, dentre muitos outros. O arremate de Antunes é certeiro e não deixa dúvidas, ou melhor, abre espaço para perguntas, questionamentos, respostas, culturas… “Somos o que somos, somos o que somos, inclassificáveis, inclassificáveis…”.
Raphael Vidigal
Fotos: Capa do disco “As Cidades”, de Chico Buarque; e Elis Regina e Jair Rodrigues no programa “O Fino da Bossa”, da TV Record.