10 músicas sobre comportamento de Gilberto Gil

“Meu caminho pelo mundo…
Eu mesmo traço,
A Bahia já me deu,
Régua e compasso…” Gilberto Gil

O cantor e compositor Gilberto Gil

 

*por Raphael Vidigal

Useiro e vezeiro em misturar as influências, ritmos e estilos, tropicalista por vocação e origem, baiano de nascimento e brasileiro até a espinha, Gilberto Gil é dos compositores mais ouvidos e repetidos por bocas e becos e lonas, e para isso há motivo mais do que consistente. É que com sua geleia geral o autor de “Aquele Abraço”, “Toda Menina Baiana”, “A Paz”, e tantos, mas tantos outros sucessos sempre manteve o olhar como de cronista, não preso aos fatos, porém transformando-os – por sua concepção poética e fluida do mundo – em instrumentos de reflexão e mudança. Talvez aí resida o segredo de Gil estar-nos tão próximo, pois afinal fala sobre comportamento não a partir da moral, e, sim, arte, e não inventaram ainda melhor maneira de comunicação e contato.

Meio-de-campo (MPB, 1973) – Gilberto Gil
Em 1973 Gilberto Gil homenageia o jogador Afonsinho, habilidoso meia do Fluminense que tinha uma combativa postura contra a ditadura militar instaurada no Brasil desde 1964. Voltando do exílio imposto pelos militares em Londres no ano de 1972, Gil mistura, com a habitual inteligência versos que fazem referência tanto ao esporte como ao momento político vivido, além de reflexões existenciais. Lançada com sucesso por Elis Regina no álbum “Elis”, a bordo de um instrumental de primeira, a música faz referência a outros ídolos dos gramados, como o Rei Pelé, atacante do Santos, e Tostão, do Cruzeiro, dois importantes nomes na conquista, pela Seleção Brasileira, do Tricampeonato Mundial no México três anos antes, em 1970. Também foi regravada pelo autor em seu álbum de 1973, “Cidade do Salvador”, e anos depois, com o acompanhamento de Dominguinhos.

Pai e Mãe (MPB, 1975) – Gilberto Gil
Em 1975, no célebre disco “Refazenda”, Gilberto Gil aludiu a uma prática comum do seu período de infância para combater um preconceito latente na sociedade. “Pai e Mãe” retrata a diferença de relações dos filhos com o pai e com a mãe, tendo esta o privilégio e a licença do carinho e do afeto, enquanto ao outro, representante da virilidade, restava o medo travestido de “respeito”. Ao declarar a própria aproximação afetuosa com o pai, Gil também dá um largo passo a favor do amor livre, sem discriminação de gênero. Por essa conotação homossexual, a música recebeu uma interpretação ainda mais expressiva na voz do libertário e provocador Ney Matogrosso, no ano de 2006. “Eu passei muito tempo/Aprendendo a beijar outros homens/Como beijo o meu pai…”.

Satisfação (Frevo, 1976) – Gilberto Gil e Moraes Moreira
Em 1976, Gilberto Gil fez uma composição especialmente para Dodô e Osmar, chamada “Satisfação”, que saiu pela Continental no álbum “É a massa”, e que fazia referência no refrão à música “Satisfaction” dos Rolling Stones, já demonstrando a sede de antropofagia musical do guitarrista Armandinho, filho de Osmar e que havia sido incorporado ao grupo em 1974 com a missão de expandir a sonoridade do “Trio Elétrico Dodô e Osmar”. A música foi regravada pelo grupo em 1983, no álbum “Folia Elétrica”, pela gravadora Som Livre. Em 1998, foi resgatado em um álbum lançado pela Polygram, intitulado “Satisfação – Raras e Inéditas”, um registro raro com a canção na voz de seu criador, Gilberto Gil.

Cálice (MPB, 1978) – Chico Buarque e Gilberto Gil 
O tema religioso perpassa toda a estrutura da música “Cálice”. Composta numa “Sexta-Feira da Paixão”, a lembrança do martírio de Cristo inspirou Gilberto Gil a identificá-lo com a situação vivida pelos brasileiros no auge da ditadura militar no país. A melodia, também de memória sacra, acompanha os versos que falam da “bebida amarga”, a “força bruta”, o “monstro da lagoa” e “o grito desumano”, entre outros. Todas essas imagens fortes seriam ainda coroadas com o refrão que mistura o sentido das palavras “cálice” e “cale-se” através do som. A figura imponente de “um pai que destrói as individualidades” fez com que Gilberto Gil jamais regravasse a canção após a tentativa, censurada pelo regime, de apresentá-la em show ao lado de Chico Buarque, no ano de 1978.

Logunedé (Tropicália, 1979) – Gilberto Gil
Gilberto Gil compôs em 1979 a música “Logunedé”, em homenagem à entidade do candomblé que é metade homem e metade mulher. Ao ritmo da androginia da tropicália, Gil remetia-se à religião para tratar o tema da homossexualidade de forma aberta e sem preconceitos. Gil também compôs “Super-homem – a canção” que fazia referência ao universo feminino com admiração e desejo de pertencimento a ele.

Sarará Miolo (Tropicália, 1979) – Gilberto Gil 
O tropicalista Gilberto Gil sempre empunhou, dentro de suas principais propostas e demandas, a bandeira do movimento negro e contra o preconceito racial no Brasil. Figura de destaque, proativa, Gil conta ainda com uma gama de recursos e influências, raramente se valendo do artifício panfletário. O compositor costuma abordar o tema de maneira perspicaz, sábia, a que melhor atingia o coração e a consciência. Além dos trabalhos relacionados a Bob Marley, trafegou pelos blocos negros do carnaval da Bahia, como o “Ilê Ayê”, e dedicou o disco “Realce” quase que inteiramente a esse tema, só que em múltiplas abordagens. Um dos exemplos é a espirituosa “Sarará Miolo”, de 79.

Super-Homem, a canção (MPB, 1979) – Gilberto Gil
Em 1979, após a trilogia iniciada com “Refazenda”, e que seguiu com “Refavela” e “Refestança”, esta ao lado de Rita Lee, Gilberto Gil lançou o álbum “Realce”, um dos de maior destaque de toda a sua trajetória. Novamente o compositor aborda de maneira sensível o universo que se tangencia por mulheres e homens. Eliminado a linha imaginária que se consolidou por moral e costumes Gil afirma sobre a canção: “todo homem é mulher e toda mulher é homem”. A inspiração para a música veio após o parceiro Caetano Veloso chegar entusiasmado para lhe contar a história do filme do “Super-Homem” que acabara de assistir no cinema. O ponto que mais impressionou Gil foi o herói “mudando o curso da história por causa da mulher”, ao tentar reverter o tempo.

Tempo Rei (MPB, 1984) – Gilberto Gil
É de Gilberto Gil uma das mais cristalinas demonstrações da qualidade subjetiva e da densidade crítica e de consciência que se pode extrair dos ditados populares. O movimento capitaneado na música brasileira por Gil, aliás, ao lado de Caetano Veloso, tinha como uma das metas estabelecer a real valorização da nossa cultura, afinal o “Tropicalismo” estende seu tapete vermelho desde Beatles até Vicente Celestino. “Tempo Rei”, traça um paralelo existencialista, entre a finitude e o que é eterno, o momento presente e o passageiro. Foi lançada em 1994, e começa, sem terminar, um dos mais conhecidos ditados do Brasil. “Água mole/Pedra dura/Tanto bate/Que não restará/Nem pensamento…”. Provas de que a sabedoria popular permanece.

Os Pais (Reggae, 2006) – Jorge Mautner e Gilberto Gil 
Canção lançada através da fértil parceria entre Jorge Mautner e Gilberto Gil, oriunda do período tropicalista de ambos, no ano de 2006, “Os Pais” faz alusão justamente a uma temática ultramoderna, ao explicitar as contrariedades e contradições inerentes aos pais da nova geração, que não encontram o meio-termo entre as liberdades e os temores presentes nos tempos modernos. A música foi gravada tanto por Gil quanto por Mautner, e na versão do baiano teve reforçada a melodia ao ritmo de reggae. Já Mautner preferiu abordagem mais langorosa, interpretando-a com indolência. “Os pais, os pais, estão preocupados demais, com medo que seus filhos caiam nas mãos dos narco-marginais, ou então na mão dos molestadores sexuais, e no entanto ao mesmo tempo são a favor das liberdades atuais! (…) mantém-se a moral por um fio, um fio dental…”.

*Bônus: Gilberto Gil – intérprete

O Bonde de São Januário (Samba de Carnaval, 1941) – Wilson Batista e Ataulfo Alves
“O Bonde de São Januário” guarda uma das mais saborosas histórias da nossa MPB, pois, inicialmente feito para exaltar a preguiça, e não a labuta teve de ser modificado a mando do DIP, departamento de censura durante a ditadura de Getúlio Vargas, afinal os seus integrantes consideravam que já passava dos limites a ode ao “malandro”. Wilson Batista e Ataulfo Alves, dupla de peso do nosso samba e completamente diferentes entre si na maneira de se portar, inclusive em relação ao trabalho, tiveram de substituir os versos e ao invés de dizer que não iriam trabalhar mudarem tal direção. Assim o bonde passava a contar com mais dois dignos operários. Foi lançada em 1941 por Ciro Monteiro. Posteriormente regravada por Gilberto Gil, Elza Soares e o próprio Ataulfo.

Fotos: Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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