Brasil, o país dos ditados

*por Raphael Vidigal

“tudo dito,
nada feito,
fito e deito” Paulo Leminski

A origem para a profusão de ditados entre os brasileiros tem uma explicação convincente no processo de colonização do país. Como os escravos não podiam se comunicar abertamente, estabeleceram uma linguagem codificada. A semelhança com a poesia, nesse aspecto, dá a medida exata do por que uma nação mestiça, influenciada pela cultura de portugueses, italianos, holandeses, japoneses, africanos, e outros mais, concebeu expressão tão rica e singular. A música é mais uma prova desse estilo. Por vias do samba, da marchinha, do rock e da vanguarda, e através das décadas de 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90, até os dias atuais, o Brasil se estabeleceu como o país dos ditados. Tão populares que alguns já mereceram, inclusive, as páginas de dicionários.

Com que roupa? (samba, 1931) – Noel Rosa
Logo no início da década de 1930, um dos mais prolíficos e reconhecidos compositores populares do país deu o seu pitaco no tema, ao abordar, a partir de uma melodia inspirada no “Hino Nacional”, a dificuldade de um cidadão em se aprontar para a festa diante das dificuldades financeiras. Noel Rosa, conhecido como o “Poeta da Vila Isabel”, natural do bairro carioca em questão, entremeia expressões como “não está sopa”, “pulando como sapo” e “praga de urubu”, a outras que ele mesmo tratou de tornar populares, a exemplo dos versos “meu paletó virou estopa” e o inesquecível refrão “com que roupa, eu vou?”. A música, lançada pelo autor, foi regravada por diversos cantores, como Nelson Gonçalves, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ivan Lins e Aracy de Almeida.

Canção para inglês ver (fox, 1931) – Lamartine Babo
Provavelmente oriundos da desigualdade social presente desde a origem e construção da nação, é interessante notar como os ditados populares quase sempre enveredam por este caminho. A música composta pelo carnavalesco Lamartine Babo em 1931, apresenta no título um desses ditados. “Canção para inglês ver”, utiliza a expressão que significa, nada mais, do que as constantes manobras de convencimento e enganação do povo brasileiro por parte de seus políticos e mandatários. “Para inglês ver” seria algo fictício, mentiroso, ilusório, sem poder de convencimento nem conexão com a realidade. Para completar, esse fox humorístico faz troça ao uso de expressões estrangeiras no país, identificadas com certo deslumbramento. Foi lançada por Lamartine e regravada por Joel de Almeida.

Aguenta a mão, João (samba, 1965) – Adoniran Barbosa e Hervé Cordovil
Novamente o pano de fundo social estabelece o enredo para que Adoniran Barbosa e Hervé Cordovil componham a história de “Aguenta a mão, João”, samba de 1965. A música conta os percalços porque passa o protagonista depois de uma enchente, ao que os compositores advertem: “não reclama, pois a chuva só levou a tua cama/não reclama, guenta a mão, João/que amanhã tu levanta um barracão muito melhor”. Além do uso de gírias paulistanas, características do modo de compor de Adoniran, ao final a canção é coroada com uma das mais repetidas expressões nacionais, um dos ditados que melhor exemplifica o cotidiano da grande maioria dos brasileiros: “Com uma mão atrás e outra na frente”. Foi lançada por Adoniran e regravada, depois, com Djavan.

Laranja madura (samba, 1967) – Ataulfo Alves
O mineiro Ataulfo Alves, filho de um violeiro, sanfoneiro e repentista da Zona da Mata do estado, foi leiteiro, condutor de bois, carregador de malas, engraxate, marceneiro e lavrador, além do mais frequentava a escola, antes de se tornar um dos mais conhecidos compositores populares do Brasil. Não espanta, portanto, que Ataulfo tenha recolhido uma expressão popular, um ditado, para colocar em sua música. “Laranja madura, na beira de estrada, ta bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé”, exemplifica em versos a decantada desconfiança mineira. Pois foi na escola da vida que Ataulfo formou seu caráter social e artístico. A música foi lançada em 1967 por Ataulfo com as suas “Pastoras”, outra tradição de Minas, e regravada por Noite Ilustrada e Itamar Assumpção.

Bom conselho (MPB, 1972) – Chico Buarque
Chico Buarque subverte o conceito dos mais famosos ditados populares em sua música “Bom conselho”, lançada em 1972 no álbum que reproduz peças apresentadas pela primeira vez no programa que tinha em parceria com Caetano Veloso na TV Globo. Em pleno período de ditadura militar, cada vez mais perseguido pelo regime, essa artimanha tinha como princípio desmistificar convenções e a crescente onda da mordaça, praticada com censura e também tortura e assassinatos. Chico demonstra, com maestria, que dependendo do uso e da interpretação que se deseja, o decantado recurso retórico e do sofisma pode transformar uma expressão de sabedoria popular em arma para sublinhar senso comum, clichê e estereótipos, a favor de um conservadorismo.

Como vovó já dizia (rock, 1974) – Raul Seixas
Clara Nunes e Raul Seixas guardam mais em comum do que supõe a nossa vã filosofia. Embora os olhares sejam diferentes, ambos recorrem às figuras da avó como expressão de sabedoria. Essa figura, que em culturas orientais é tida como anciã e guardiã do conhecimento, recebe de Raul Seixas um olhar rebelde, diferente da admiração de Clara na música “Coisa da Antiga”, de Nei Lopes e Wilson Moreira. Raul, ao contrário, é irônico ao demonstrar, de maneira codificada, a argúcia de comportamentos considerados transgressores, como, por exemplo, o uso de drogas ilícitas. Nessa ladainha, reproduz ensinamento da avó: “a banana é vitamina que engorda e faz crescer”, mas também rebate: “a formiga só trabalha porque não sabe cantar”.

Jardins da Babilônia (rock, 1978) – Rita Lee e Lee Marcucci
Após deixar o posto de vocalista da banda, cada vez mais psicodélica, “Os Mutantes”, Rita Lee passou a se apresentar com a “Tutti Frutti”, e assim assinou três álbuns. Em 1978, a inspiração veio de uma das “Sete Maravilhas do Mundo Antigo”, os Jardins Suspensos da Babilônia, que serviram para elucidar o quanto há de magia e encanto na substância dos ditados populares. Como se tratam, na maioria das vezes, de metáforas, eles utilizam uma camada fantasiosa, imagética, responsável, certamente, por grande parte de seu carisma e identificação. “Jardins da Babilônia”, rock em parceria com Lee Marcucci se apodera de alguns, como “botar as asas pra fora” e “quem não chora daqui, não mama dali”. Rita se vale do mesmo recurso na música “Pagu”.

Bicho de 7 cabeças (MPB, 1979) – Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Renato Rocha
No final da década de 1970, o pernambucano Geraldo Azevedo lançou a música “Bicho de 7 cabeças”, de sua autoria com o paraibano Zé Ramalho e Renato Rocha. Desde o início da década, a música brasileira sofria uma oxigenação com as criações que vinham do nordeste do país. Essa canção insurge de forma tão vigorosa que recebeu inúmeras regravações em diferentes períodos, sempre mantendo o poder de impacto provenientes de sua melodia e letra. Nesta obra, os ditados transcritos são aqueles que emergem dos momentos de raiva, desacordo, com o intuito de expressar exagero e inconsequência. Por isso o clima não poderia ser outro. “Não tem pé, nem cabeça” e “Bicho de 7 cabeças” aparecem no decorrer desta simbólica peça.

Meu pirão primeiro (samba, 1980) – Nilo Dias e Jorge Garcia
Bezerra da Silva certifica no samba “Meu pirão primeiro”, de Nilo Dias e Jorge Garcia, a influência da cultura negra e dos escravos na música e nos ditados brasileiros. Logo nos primeiros versos ele desfaz o enigma. “Farinha pouca/Meu pirão primeiro/Este é um velho ditado/Do tempo do cativeiro/E a Chica assim dizia/Na hora de preparar/Pro pirão ficar gostoso/Tem que saber temperar”. Novamente aparece uma das mais conhecidas características e qualidades do povo brasileiro, a de tirar do martírio, da dificuldade, da miséria, a obra prima para sua arte, sua expressão mais genuína e diversa. Para consolidar a antiguidade desta expressão, ela já havia sido cantada em 1945, pela dupla caipira Jararaca e Ratinho, em uma batucada de mesmo nome.

Nego Dito (vanguarda, 1980) – Itamar Assumpção
São raros os artistas de vanguarda que não se valem de uma sólida formação pautada na tradição. O pintor Wassily Kandinsky, inventor do abstracionismo nas artes plásticas, baseava suas criações no folclore, nos rituais xamânicos dos índios de sua região e nos contos de fada. Qualquer semelhança com a música de vanguarda proposta por Itamar Assumpção em terras tupiniquins não é mera coincidência. Sua obra está recheada de referências desse tipo, por exemplo, nas canções “Sutil” (“muita areia para o meu caminhãozinho”) e “Aprendiz de Feiticeiro”. Mas é em “Nego Dito”, lançada no álbum de estreia, em 1980, que Itamar tece este encontro da maneira mais radical. A expressão popular pinçada não poderia ser outra do que “mato a cobra e mostro o pau”.

Homem com H (xote, 1981) – Antônio Barros
Foi de Gonzaguinha, filho de Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”, a sugestão para Ney Matogrosso gravar a faixa “Homem com H”, um xote composto por Antônio Barros. O inusitado da situação serviu para tingir de ironia os versos que eram cantados, com o habitual viés andrógino, pelo líder do grupo “Secos & Molhados”, a essa altura já em carreira solo. O próprio Ney foi surpreendido com o estrondoso sucesso do xote, gravado por ele em 1981, e já lançado anteriormente pelo “Trio Nordestino” em 1973, porém, com êxito restrito à região nordestina. “Se correr o bicho, se ficar o bicho come”, servem para alertar ao diagnóstico insolúvel de algumas situações. Quando não há saída, a melhor solução pode ser a entrega aos caprichos da música brasileira!

Aprendendo a jogar (MPB, 1981) – Guilherme Arantes
Um dos motivos sempre apontados para alçar Elis Regina ao posto de maior cantora brasileira é, não somente a qualidade da voz, a afinação, a entrega nas interpretações, mas a escolha do repertório. Elis gostava de recolher e pesquisar tanto temas então esquecidos pelo público e compositores relegados ao ostracismo, como Adoniran Barbosa, quanto jogar luz a desconhecidos da massa. João Bosco, Renato Teixeira, Milton Nascimento e Zé Rodrix são alguns deles, mas também Guilherme Arantes, de quem Elis captou todas as nuances da rítmica e sinuosa “Aprendendo a Jogar”. Em consonância com a melodia, o compositor aplica o recurso do drible, para lançar à plateia versos que embaralham os ditados populares do Brasil. Foi lançada em 1981.

Camarão que dorme a onda leva (samba, 1981) – Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Beto Sem Braço
A renovação do samba carioca é creditada, em larga medida, ao bloco carnavalesco “Cacique de Ramos” e, sobretudo, à presença da madrinha Beth Carvalho, apontada de tal maneira pela maioria dos sambistas da nova geração. Não é por acaso. Em 1981, Beth revelou ao Brasil o compositor e cantor Zeca Pagodinho, quando o convidou para cantar em seu disco o samba “Camarão que dorme a onda leva”, parceria com Arlindo Cruz e o lendário Beto Sem Braço. Além do ditado presente no título, que expressa a necessidade de atenção, agilidade, esperteza e dedicação por parte do cidadão brasileiro, outros são apresentados na letra, entre eles “hoje é dia da caça, amanhã do caçador”, sobre o caráter cíclico da vida, e “não faça gato e sapato de mim”.

Tempo Rei (MPB, 1984) – Gilberto Gil
É de Gilberto Gil uma das mais cristalinas demonstrações da qualidade subjetiva e da densidade crítica e de consciência que se pode extrair dos ditados populares. O movimento capitaneado na música brasileira por Gil, aliás, ao lado de Caetano Veloso, tinha como uma das metas estabelecer a real valorização da nossa cultura, afinal o “Tropicalismo” estende seu tapete vermelho desde Beatles até Vicente Celestino. “Tempo Rei”, traça um paralelo existencialista, entre a finitude e o que é eterno, o momento presente e o passageiro. Foi lançada em 1994, e começa, sem terminar, um dos mais conhecidos ditados do Brasil. “Água mole/Pedra dura/Tanto bate/Que não restará/Nem pensamento…”. Provas de que a sabedoria popular permanece.

Pano pra manga (samba, 1994) – Jards Macalé e Xico Chaves
Um dos mais inventivos e originais compositores do Brasil. Assim é Jards Macalé, cuja seriedade da formação artística é combinada com uma franca postura de irreverência e insubmissão. A modos, a princípios, a ditos feitos. Exceção feita, obviamente, aos ditados brasileiros. Macalé compôs e lançou com Xico Chaves em 2003 o samba “Pano pra manga”, em que, além do título, aparece o ditado “pinta e borda”, mais propício impossível à postura de Macalé na música brasileira. Dentre os muitos artistas que pontificam com sabedoria o cancioneiro nacional, é imprescindível a menção honrosa a um de seus pesquisadores mais constantes e incansáveis, o compositor, ator e apresentador Rolando Boldrim. Pessoas que não dão um pingo sem nó na arte!

Descoberta-da-Terra-Portinari

Pinturas: “A Cuca”, de Tarsila do Amaral; e “A Descoberta da Terra”, de Cândido Portinari, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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