Produtos naturais

“no começo assim como quem cava um poço no deserto, depois, aos poucos, sentindo a areia mais úmida, uns filetes d’água brotando lentamente, até agora, quando me sinto na iminência de mergulhar o corpo nesse lago (talvez mar)-eu-os outros-cosmos, não sei.” Caio Fernando Abreu

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Claudete não é Soares, nem queria ser cantora. À verdade, desconheço-lhe sobrenome. Aviso sua profissão tão antiga quanto outras: servir aos homens. Pode-se identificá-la (Claudete, a secretária) facilmente como uma solteirona macilenta que fuma ou inala litros de cigarro entre telefones ocupados e surdos, crispados por um amarelo ocre.

Estes (os cigarros, não os telefones) Claudete pede ao velho pai que sempre a amola com questões sobre impotência, que os compre. Não que ele seja um velho tarado, nem que não seja. É que Claudete sem sobrenome trabalha vendendo produtos naturais que ajudam o homem (e a mulher) a ter desempenho melhor esperado na cama. Como já deve ter dado para perceber, são produtos energéticos e revigorantes.

Secretária, assistente, ‘guenta-tudo-e-reclama-à-beça’, Claudete trabalha para um famoso radialista de Alagoas. Nisto, embaraço-me em duas frases iguais: O qual, apesar de muito famoso, precisa juntar a seus honorários tal atividade ‘empresarial’. Ou: Que para garantir sustentos robustos a seus honorários alia o jornalismo à publicidade.

Sobre a origem e confiabilidade desses incríveis produtos naturais, os clientes atestam com vultuosos sorrisos nos corpos geralmente moles e gordos (relaxados). Embora o Ministério Público já tenha tomado diversas vezes os mesmos na lista de ‘suspeitos’ (os produtos, não os clientes).

Não me parece nem de perto que Claudete seja feliz (satisfeita seria a palavra) com alguma coisa. Não pelo fato de estar sempre xingando, aos berros com a outra secretária ou agüentando com sorriso bufo as brincadeiras assanhadas do patrão, que lhe passa a mão pelas cadeiras rechonchudas e nem um pouco atraentes (ou atrativas).

O que me dá a real certeza dessa sentença equívoca é a língua nos dentes. Sim. Acreditem: Claudete tem mesmo a língua nos dentes. Não é presa. Nem é ditado popular: ‘dar com a língua nos dentes’. Não. A língua de Claudete é nos dentes. Talvez seja isso que a tenha feito aceitar o emprego chato. Quase nunca oferecem alimento a quem tem a língua nos dentes. Pelo medo, obviamente, de que esta trisque a comida e a lance ao longe.

Mas na monotonia dos dias de telefone ocre e cigarro filtrado de Claudete, um dia chegou à empresa (um pequeno quarto com caixas dos produtos empilhadas) um sujeito. Digo sujeito porque não era um animal. Só que nem rapaz eu afirmaria, tão afeminados os seus tiques: escovava os cabelos lisos para trás da orelha, conferia o tamanho das unhas, olhava-se no espelho de mão.

Se tinha nome, Claudete não perguntou (tem a língua nos dentes), foi só espirrar que o sujeito se transformou num tal gesto que pensei eu que ele iria agarrá-la e descê-la escadas abaixo. Ali mesmo, naquele instante, eu repuxei meus olhos furtivos e intui o que não se passava.

O moço sujeito altruísta era argentino. Não conhecia a língua. E a língua do corpo, vocês sabem, soletra melhor que qualquer parêntese. Pois na sua terra espirro era sinal de orgia. Não, não a Argentina. Ele era argentino dos Andes. Pois numa manobra radical e soberba, arrastou Claudete para o terreno baldio ao lado da empresa, arriou-lhe as calçolas e mandou ver.

Literalmente esborrifou na crioula gorduchinha sua saliva saliente em tridente e línguas. Acontece que nada se passou de diferente. Era comum aquele lugar ser usado para motel improvisado. Não com Claudete, naturalmente. Na maioria das vezes eram casos entre cachorros e gatos, que não falam a mesma língua. E esse era mais um desses. Claudete latia, o argentino miava.

No dia seguinte ela não apareceu para trabalhar. Deitada na cama havia tomado uma decisão drástica. Dizem que o ar empesteado de rajada e mormaço, vindas de seu cigarro aceso na língua entre dentes iluminou a sala. Como morava sozinha e o pai já havia falecido há vintanos (20 anos) ganhou arestas de boato. Ligou para o radialista: Queixava-se de dores de hortelã.

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Raphael Vidigal

Pinturas: “Elefantes Celebes” e “Mulher, velho e a flor”, respectivamente, de Max Ernst.

Publicado originalmente no blog “O Ovo Apunhalado” em 28/11/2011.

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13 Comentários

  • Raphael,

    Não há dúvida: você é um Escritor!
    Você já mostrou seus textos, contos e poesias para um professor doutor em Literatura?
    Continue pesquisando e escrevendo, pois penso que o jornalismo será o impulso para voos maiores.
    Abraço,

    Tio Eduardo

    Resposta
  • Meu querido amigo PH, faça a porra do facebook logo, ai você pode criar uma página para cada blog seu. Deixa de ser teimoso, isso não vai lhe dar mais visibilidade e vai facilitar não só a sua vida como daqueles que gostam dos seus textos, como eu.

    Abraçoss e precisamos marcar de tomar uma!!

    Resposta
  • ADOREIIIIIIIIIIIII !!!!!!!!!!!!!!

    Mto mto mto bom, Raphael!!!

    A parte q eu mais gostei: “as brincadeiras assanhadas do patrão, que lhe passa a mão pelas cadeiras rechonchudas e nem um pouco atraentes (ou atrativas)”

    Resposta
  • Bom dia meu amigo Raphael Vidigal! Como sempre exelente trabalho! Abraços

    Resposta
  • Contador de casos casuais, literalmente literato, sem esbarrar na língua pátria, esquivando-se de tropeços, bom começo para um livre escritor, naturalmente produto da intuição, equlibrista do coração e da razão.

    Resposta

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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