O Blecaute Que Iluminou O Brasil

“e aquela auréola que possuía, ao afastar-se de seu rosto, estendeu-se mais além, para iluminar outros sonhos.” Gustave Flaubert

blecaute

O rosto negro iluminando um sorriso branco são as primeiras armas que o General da Banda dispõe. Sem firulas ele ameaça com voz despojada de brasileirismo que cedo perdeu os pais e num rompante alcançou degrau artístico. Por ordenamento sugestivo do Capitão Furtado, radialista da Difusora de São Paulo, virou Blecaute e lançou para o carnaval sucessos do povo: Maria Candelária, Pedreiro Waldemar, Maria Escandalosa, Natal das crianças. Todas emergiram com letra maiúscula de sua garganta privilegiada. Otávio Henrique de Oliveira não foi nada mais que um cantor e compositor esquecido pela grife da música brasileira, mas alavancado às alturas em sua época áurea e definitiva.

General da Banda (samba de carnaval, 1949) – Sátiro de Melo, Tancredo Silva e José Alcides
Elegantemente trajando a farda que lhe foi ofertada, Blecaute se investe de alamares e dragonas para desfilar com alegria expressiva ao lado do Rei Momo, Rainha Moma, suas Princesas e Cidadão Samba. O ponto de macumba é sua criação refletida na fantasia que usa. Moldada por Sátiro de Melo, Tancredo Silva e José Alcides, começou a persegui-lo na rua. Até que ele foi certa noite em direção à batucada: “Chegou o General da Banda, ê! ê!, chegou o General da banda, ê! á!”. Em 1949, o pico de energia nas ruas chamava-se Blecaute.

Pedreiro Waldemar (marcha de carnaval, 1949) – Wilson Batista e Roberto Martins
Blecaute elogiava sem disfarces o querido amigo Wilson Batista, “um mulato frajola, muito elegante, alegre, torcia pro Flamengo, por sinal, um garoto bacana à beça”. Foi ele, ao lado de Roberto Martins, o autor da marchinha de 1949 que elevou o garoto de Espírito Santo do Pinhal, no interior de São Paulo, ao primeiro trampolim na capital farrista. Durante a festa mais comemorada do ano havia unanimidade em saltitar a melodia espessa da dura vida do Pedreiro Waldemar, que “faz tanta casa e não tem casa pra morar, leva a marmita embrulhada no jornal, se tem almoço nem sempre tem jantar, (…) constrói o edifício e depois não pode entrar”. Você conhece?

Maria Candelária (marcha de carnaval, 1952) – Klécius Caldas e Armando Cavalcanti
Grande Otelo era o inspetor de gafieira que exigia: “dança direito ou desce!”, no primeiro filme que contou com a atuação de Blecaute, ainda como figurante, “Tristezas não pagam dívidas”. Depois, seguiu carreira bem sucedida no cinema, participando de 20 filmes, num deles, intitulado “Tudo Azul”, de Moacyr Fenelon, entoava a sátira “Maria Candelária”, calcada na conhecida fórmula de abuso por parte de algumas funcionárias públicas. Essas costumavam esperar ônibus no ponto que dá sobrenome à protagonista. Se bem que elas preferiam mesmo andar de pára-quedas, como sugerem Klécius Caldas e Armando Cavalcanti.

Maria Escandalosa (marcha de carnaval, 1955) – Klécius Caldas e Armando Cavalcanti
O cantor Nuno Roland contracenou com Blecaute e Marlene no espetáculo Carnavália, encenado no Rio de Janeiro em 1968. Antes ele havia sido o responsável por apresentar o carnavalesco General à dupla Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, nos corredores da Rádio Nacional. No meio de toda essa confraternização caiu na folia a desinibida “Maria Escandalosa”, que em 1955 Blecaute cantara rindo e dançando com os braços, como de costume, mais um sucesso.

Piada de Salão (marcha de carnaval, 1954) – Klécius Caldas e Armando Cavalcanti
As dificuldades de fala eram tiradas de letra por um descontraído Blecaute que saboreava a gagueira do personagem com irredutível euforia. Ele que havia sido engraxate e entregador de jornais depois de ficar órfão aos 6 anos, e antes de realizar o sonho da cantoria fora especialista em vencer barreiras. E por isso mesmo dava tom especialmente delicioso à “Piada de Salão”, da dupla que o municiava, Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, no ano de 1954: “É ou não é, piada de salão, se acham que não é, então não conto não…”

Papai Adão (marcha de carnaval, 1951) – Klécius Caldas e Armando Cavalcanti
Blecaute colecionou muitos admiradores que adoravam seu jeito afável e de bem com a vida, esbanjando largo sorriso. Além disso, era conhecido também pela elegância, tanto dos passos como das vestimentas. A cronista Eneida dizia: “Olha que elegância de porte e que charme de sorriso.” Mas o traço mais marcante de Blecaute sem dúvida nenhuma era a espontânea simpatia, contida em sua maneira sinuosa de cantar ditados tão populares: “Papai Adão, Papai Adão já foi o tal, hoje é Eva quem manobra, e a culpada foi a cobra”. A divertida brincadeira sobre as relações conjugais é mais um exemplo da bem sucedida comunhão entre Blecaute e Klécius Caldas & Armando Cavalcanti.

Natal das crianças (música natalina, 1955) – Blecaute
“Natal das crianças” comemora a bonita inocência guardada no canto suave de Blecaute. É com singeleza que ele compõe a harmonia e imita os sinos que aguardam Papai Noel. Na música de 1955, que tornou-se clássica e recebeu mais de 40 regravações, dentre elas a de Carlos Galhardo, a celebração é agraciada com o clima de bondade que merece ter, sob a batuta do espaçoso sorriso branco que ocupa a cara inteira dum negro orgulhoso de simpatia e samba. Blecaute não é Blecaute só no nome artístico. É também na união gostosa de música e sabedoria em uma única risada ao povo. Uma risada sua já é suficiente. Mas ele não se cansa de distribuí-las, como presentes. Ao som de palmas e vibrantes marchinhas, marche General, a banda é sua!

blecaute-cantor

Raphael Vidigal

Lido na rádio Itatiaia por Acir Antão em 05/12/2010.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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