O Amor do Outro

“Há coisas que só se aprende quando ninguém as ensina. E com a vida é assim. Mesmo há mais beleza em descobri-la sozinha, apesar do sofrimento.” Clarice Lispector

Salvador Dalí foi o mestre do surrealismo na pintura

Num movimento involuntário, que até então julgara incapaz, e infundado, escreve mais um acorde. Morosa vem a serpente a sibilar injúrias no teu ouvido, de marfim vêm as esculturas puxadas por pretos guindastes, pedras levadas à vida, cores levadas à tela, por Rafael: o virtuoso, o desbravador, o gênio. Ao que o artesão supera o artista, o maestro suprime toda uma orquestra e o discípulo ao redor do mestre profere palavras de esborro qual hélices desmilinguidas num liquidificador. Jorra o caldo para todos os lados, e eu, o único até o momento inconsolável, resolvo me juntar à esbórnia: danço sobre a velha mesa, rodopio os braços, caio de quatro, lambo o assoalho fedendo a cigarros e cerveja choca, dou aos ouvintes o que de mim querem: o vexame, a súplica mal feita, o ridículo.

O pedido para retornar à realidade que me faz a cabeça inchada, em ressaca, na manhã seguinte leva-me pão murcho à boca antes mesmo da primeira escova ensaboar os dentes. Os dentes do cão depravado, do animal no cio, doem, tremem, parecem de leite à espera de uma provação definitiva: cair e deixar o vazio: o buraco tremendo – tenebroso, e vazio. Mas não, são apenas os dentes de ferro que sentem a dor e o odor e a vertigem de muito prazer da noite pro dia. E o que era o prazer senão esse intermitente luzir de cruzes à espera duma coroa de espinhos? A coroa vinha, logo caía, restavam os espinhos. O Salvador de Nós Mesmos era um pedaço de madeira estanque na sepultura, admirada diante da cama em que rezávamos: alguns hindus, outros budistas, os mais nevrálgicos evangelhos, e os que despistam – rosário, escapulário, terço.

Católicos desde o berço éramos animais na origem: agora víamos. Enxáguo a boca, ensaboo os dentes, e a massa crua permanece imóvel, olha-me no espelho, aponta-me as cicatrizes, os cravos, espinhas, os erros: sempre os mesmos, sempre os mesmos erros. Que repetíamos, solenes, acreditando piamente na renovação contínua. Mas o que continuava era nada senão nossa fracassada tentativa de soarmos menos vulgares, intransigentes, mais tolerantes, e respeitáveis. Pouco a pouco deixamos essas guaridas de lado. Exigíamos nada. Recebíamos de troco o mesmo fado. Respeito não era mais necessário numa terra onde os instintos traidores soavam mais fortes. Castidade, sexo por amor, cuidado ao corpo, paz de Deus… Foi ficando de lado… Esquecido… Como uma trouxa de roupas… Uma tralha… De tão velha, encardida, usada por tantos de tantas maneiras óbvias e surradas…

Perdíamos (perda era palavra de ordem) o sentimento de pertencermos a algum lugar… Objetos… Coisas… Não nos reconhecíamos nus muito menos sob casacos (de pele, causava asco, a nossa e a dos animais, que com o dedo em riste apontamos tantas vezes, agora se misturavam)… Compreendo que a direção escolhida não faz diferença, nem falta, todas as cortinas escondem os mesmos ventres, as mesmas esperanças, falsas… A decepção primeira não era outra senão a última. Éramos todos iguais, descobri num salto! Num salto pulo para trás, repreendo, reprimo, o que em mim se avilta intolerante… E belo… É belo e intolerante o desenho a ser feito de minha cara, meus dentes podres, minha barba mal feita e alva, num amarelo ovo, gema-clara, na frigideira havia meu: rosto.

Meu rosto numa panela de ovo, fritando, fritando, tecendo os fios de cobre, os finos e súbitos sentimentos de culpa, angústia, arrependimento, abolição… Abolia meus pecados em prol duma convivência pacífica: comigo mesmo. Mas não houve tempo, não houve tempo… No momento em que me perdoaria uma enchente de insultos, ameaças, e cobranças invade meu apartamento, era ele: o outro. Acusa-me, aponta o dedo, mostra o que em mim é digno de asco, nojo, dó, desdém, abre cada botão de minha surrada camisa, arranca fio a fio os pelos do corpo de lixo, detecta cárie a cárie as sujeiras da boca fedida, soltei UM ÚNICO GRITO:

[A história (a histriônica) acabou antes. Comédia. Aplausos!
Da estória (delinquente e trágica), acabou depois. O apupo, a vaia: o drama…]

“É um romance ainda verde, imaturo”.

Entremeia palavras-cruzadas, ante o jornal nas pernas estica os óculos à ponta do nariz, tem uma xícara de chá e um bocejo invencível:

A substância dilui
Obra de Salvador Dalí une sonho à realidade

Raphael Vidigal

Pinturas: Obras de Salvador Dalí.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]