“A solidão pesa-me. E a sociedade também.” Eugène Ionesco
Diante de uma câmera, Maria Flor, 36, diz uma coisa absurda, capaz de elevar as orelhas do dramaturgo Eugène Ionesco (1909-1994). Não é pouco. A peça mais célebre do autor romeno, encenada pela primeira vez em 1960, traz uma cidade inteira ameaçada por uma estranha epidemia, onde todos se transformam em rinocerontes e cuja atualidade tem sido comprovada a olhos nus. O ataque de Maria Flor tinha um alvo certo: o presidente Jair Bolsonaro, que repetiu gestos que, em qualquer peça do chamado Teatro do Absurdo, soariam histriônicos. Ele definiu como “gripezinha” a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, que provocou uma pandemia global e caminha para matar duas mil pessoas no Brasil, se jactou da própria condição física em pronunciamento oficial e exibiu com orgulho seus passeios matinais em uma padaria e na farmácia, contrariando as recomendações do próprio Ministério da Saúde para o isolamento social, fatos que culminaram com a demissão do ministro da pasta, Luiz Henrique Mandetta.
A somatória dessas atitudes por parte do mandatário maior da nação ajudou a compor o desabafo cênico de Maria Flor, no último dia 30 de março, em um vídeo no canal do YouTube que ela mantém há cerca de um ano com o marido Emanuel Aragão, batizado de “Flor e Manu”. “O que eu estou sentindo é uma vontade inenarrável de matar um ser humano. Eu só queria pegar o Bolsonaro e esfregar a cara dele no asfalto quente até ele ficar com a cara toda esfolada e a pele dele sair e eu arrancar com a mão, com o dente, pegar aquele olho dele e enfiar os dois dedos”, disparou Maria Flor na ocasião. “O vídeo foi postado no Twitter por uma pessoa que segue o canal do YouTube e que achou aquilo engraçado e compartilhou, aí foi parar na outra ‘bolha’, que não está com raiva do presidente e que concorda com ele. Por isso, as pessoas se sentiram ofendidas pela minha fala”, afirma a atriz.
Habituados a uma média de 20 mil visualizações por postagem, o casal viu saltar a audiência do vídeo em questão para mais de 100 mil visualizações. O efeito mais preocupante foram as ameaças que começaram a chegar, repletas de ofensas de cunho machista, algo que foi discutido em um novo vídeo postado pela dupla, a fim de se posicionar diante de toda a repercussão negativa. “As pessoas comentavam como se eu estivesse falando de alguém da família delas, como se tivesse ofendido o pai delas. No primeiro momento, eu não acreditei que aqueles ataques iriam durar. Mas a massa de pessoas dispostas a constranger e atacar por qualquer motivo é enorme. Eu, inclusive, demorei a fechar os comentários do meu Instagram por conta disso, achando que iria passar. Depois de três dias de comentários e ameaças, recebi um comentário de uma pessoa dizendo que sabia onde eu morava e dando características da minha rua. Aí eu realmente me assustei e resolvi fechar os comentários”, conta a entrevistada.
De acordo com ela, “já faz três semanas que o vídeo foi postado e continuamos recebendo mensagens preconceituosas e agressivas”. Flor ainda se diz “muito surpresa com a ‘máquina’ que foi capaz de fazer uma montagem tendenciosa e espalhar este vídeo pelos perfis de apoiadores do presidente”. Instaurada na Câmara dos Deputados, em dezembro de 2019, a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) das Fake News investiga o chamado “Gabinete do Ódio”, que teria por finalidade espalhar notícias falsas sobre adversários políticos.
Em março, uma quebra de sigilo solicitada pela comissão ligou o tal “Gabinete” a uma conta do deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do atual presidente da República. “A verdade é que, quando eu falei a ‘bendita’ frase no vídeo, não foi com o desejo de que aquilo fosse feito, não era o que eu literalmente gostaria de fazer. Era uma forma de extravasar a minha frustração e a minha raiva diante do momento absurdo que estamos vivendo e da postura do nosso Chefe de Estado. Enfim, eu não estava incitando a violência, eu estava colocando, como forma de performance, inclusive, a minha raiva e a minha frustração, mas parece que isso não foi compreendido. E aí uma enxurrada de agressões maldosas foram jogadas sobre mim”, declara Flor.
Espelho. Com o nome de “Uma Breve Interrupção na Nossa Programação”, o vídeo postado, no dia 3 de abril, para explicar a celeuma não amenizou a tensão. A frase “A mamata acabou”, que se tornou uma espécie de bordão de Bolsonaro e seus apoiadores, foi uma das mais repetidas. A parlamentar Bia Kicis (PSL-DF), colocou lenha na fogueira e endossou a interação de internautas que exigiam que Flor fosse denunciada por “incitação ao crime”, delito previsto no Código Penal, que poderia render até seis meses de cadeia.
A própria atriz revelou, em seu canal no YouTube, ter sido alertada por um tio dela, admirador de Bolsonaro, de que poderia ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional, mecanismo criado durante a ditadura militar no país, e que embasou uma denúncia do Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, contra o ex-presidente Lula, condenado pelo ex-juiz em primeira instância e que, ao deixar a prisão, após 580 dias, chamou Bolsonaro de “miliciano”.
“Eu não consigo entender porque as pessoas se identificam com a postura, a fala e os ideais do Bolsonaro, mas é estranho pensar que, se estávamos indo por um caminho progressista, de respeito a individualidade e sexualidade de cada um, talvez tenha sido exatamente isso que assustou certas pessoas e elas tenham querido pertencer a um outro grupo, um grupo que não quer mudanças de perspectivas e que estava se sentindo desencontrado, sem pertencer a mais nada. Aí, de repente, surge alguém que fala as coisas que uma grande parte da população pensa, mas acha que não pode falar, e aí essa pessoa te libera e você volta a pertencer, de certa forma”, reflete a artista.
“A classe artística tem sido prejudicada e tem sofrido muito nesse processo. Agora ainda mais, o que será da arte no pós-coronavírus? Quem terá recursos para investir? Parece que as pessoas pararam de enxergar o papel fundamental da arte na sociedade. Acredito que pararam, exatamente, porque a arte é capaz de te fazer sentir ou se identificar com algo que talvez não possa ser permitido, como o desejo reprimido, a fantasia que não pode ser revelada, pois é absurda, enfim, com partes de nós mesmos que não queremos mais ver ou sentir. E não podemos nem fazer a catarse coletiva em relação a essas partes para seguir adiante, queremos apenas reprimir e pronto. Estamos com tanto medo, que não queremos ver o que a arte pode nos mostrar, porque se trata do nosso espelho”, completa.
Sobre a nomeação de Regina Duarte para a Secretaria de Cultura, no lugar de Roberto Alvim, exonerado após publicar um vídeo com referências nazistas, ela diz não ter condições “de comentar em relação a isso”. “Acho a Regina uma pessoa adorável, já trabalhei com ela, é uma atriz maravilhosa. Mas não faço ideia do que ela poderá fazer e se será capaz de articular para manter os recursos para a cultura e continuar o trabalho de incentivo aos filmes, peças, exposições, espetáculos, em um governo que não prioriza e não priorizará isso”, aponta. As duas atuaram juntas na novela “Sete Vidas” (2015), da Rede Globo.
Polarização. Em 2018, durante o segundo turno das eleições presidenciais, Flor aderiu à campanha “Ele Não”, contra o então candidato Jair Bolsonaro, e apoiou Fernando Haddad, do PT. “Acredito que essa polarização, que tomou conta do Brasil nos últimos anos, venha de um sentimento de frustração e de vontade de pertencimento muito grandes. As pessoas estavam muito frustradas com o rumo que as coisas tomaram no país, e, com isto, veio uma busca por alguém que pudesse nos ‘salvar’, alguém que reconciliasse a nossa fé nas coisas, na política, no Brasil, uma pessoa que fosse a imagem de algo novo e, ao mesmo tempo, identificável e seguro. Essa busca incessante por um messias, um salvador, é algo que coloca a gente muito em batalha, em disputa. Não queremos eleger um político que consideramos capaz, queremos um pai que vai nos salvar”, critica.
No livro “Sobre Lutas e Lágrimas: Uma Biografia de 2018, o Ano em que o Brasil Flertou com o Apocalipse”, publicado em setembro de 2019, o autor Mário Magalhães elenca uma série de episódios de censura a peças teatrais, exposições, filmes e outras manifestações artísticas no país. Em agosto do ano passado, ao suspender um edital que contemplava produções com temáticas LGBT, o governo Bolsonaro foi acusado de censor. Menos de dois meses depois, a Justiça determinou que a Ancine (Agência Nacional do Cinema) retomasse o edital. Em 2017, a exposição “Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina”, do pintor Pedro Moraleida (1977-1999), foi alvo de protestos de lideranças evangélicas em Belo Horizonte, no Palácio das Artes, que recebeu a visita de Caetano Veloso como forma de prestigiar o legado e a liberdade do artista.
“A censura hoje em dia está sendo feita pela própria população. Nós censuramos a nós mesmos. As pessoas não entendem ou não gostam de uma peça ou exposição, por exemplo, não acham que ela seja adequada, e gritam e esperneiam nas redes até que isso tenha alguma consequência, até que alguém tire a exposição do museu ou a peça não tenha público, ou a pessoa perca seguidores nas redes sociais, e aí outras pessoas vão apoiar a peça e a exposição, e assim a polarização caminha. No entanto, me parece que o grupo que esbraveja na internet é maior e mais organizado do que aquele que apoia a arte e a livre expressão artística. Por isso acho que esse grupo, que quer calar xingando e esbravejando na rede, muitas vezes sai vitorioso. E assim levamos a censura adiante”, lamenta a atriz.
Feminista. A ideia do canal no Youtube que Flor divide com o marido partiu de Emanuel Aragão, filósofo, escritor e ator, com quem ela se relaciona há quase cinco anos. “Ele começou a fazer vídeos no YouTube, com a intenção de criar um stand-up (modelo de comédia em pé), mas foi percebendo que a plataforma já era uma coisa em si, e começou a fazer vídeos diários. Eu fui me interessando e comecei a fazer também. Ele fazia os dele e eu os meus, mas, depois de um tempo, resolvemos fazer vídeos juntos e começamos a nos divertir bastante”, explica. “O YouTube é impressionante, a relação que se cria com as pessoas, a troca de textos, de conteúdo, de informação. É muito valioso”, festeja a artista, que, apesar dos acontecimentos recentes, permanece empolgada com a experiência e a possibilidade de abordar com leveza e despojamento temas contemporâneos, sem perder a profundidade, como, por exemplo, o feminismo, uma das bandeiras que ela empunha com orgulho.
“É importantíssimo as mulheres quererem ter os mesmos direitos que os homens sempre. É claro que, no Brasil, a coisa é mais complicada, porque as diferenças sociais fazem o feminismo ser uma luta diferente em cada classe social. Acho que essa é uma grande questão. O feminismo negro, o feminismo radical, o feminismo liberal, todas as formas de conscientizar as mulheres dos seus direitos são importantes e precisam ser espalhadas e ensinadas”, observa.
“O Brasil tem um número muito alto de feminicídios e acho uma loucura pensar que, enquanto a classe média e a classe média alta está reivindicando salários iguais, existem mulheres que não podem se expressar, emitir a sua opinião, educar os filhos como desejam, que não podem discordar de seus parceiros. É um movimento muito mais complexo e que precisa ser sempre lembrado e olhado por nós, mulheres, e por toda a sociedade”, salienta.
Projetos. Após um mês de vídeos diários, numa espécie de série intitulada “Quarentenados”, em que Emanuel e Flor respondiam a dúvidas e discutiam assuntos do momento, o casal resolveu dar uma pausa no ritmo e retomar uma produção semanal, além de investir em novos formatos, ainda em estudo por eles. “Nossos vídeos são cenas, de certa forma. O improviso é muito importante. Discutimos os temas antes, mas não sabemos exatamente o que o outro vai dizer ou colocar. É impossível roteirizar tudo”, informa Flor.
Encenações da atriz estão previstas para o cardápio futuro. Antes da pandemia do coronavírus, ela estava em plena preparação para interpretar Stephany, uma manicure que vive um relacionamento abusivo com o marido, Roney, na novela “Um Lugar ao Sol”, substituta de “Amor de Mãe” na grade da TV Globo, e diz que “segue lendo e estudando a personagem”. Fã do cinema brasileiro, com quem garante ter “uma relação afetiva”, e admiradora do filme “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho, ela também tem projetos nessa seara. A comédia “Quatro Amigas Numa Fria”, com Fernanda Paes Leme, Micheli Machado, Priscila Assum e Charles Paraventi, está para estrear.
“Comecei como atriz fazendo cinema e tenho uma família de profissionais no meio”, destaca a atriz, filha da roteirista Márcia Leite e do técnico de som Renato Calaça. A primeira vez de Flor na tela grande foi como uma babá que se torna prostituta e muda de nome em “O Diabo a Quatro” (2004), dirigido por Alice de Andrade. Outro ineditismo aconteceu em 2018, quando ela estreou em um palco de teatro profissionalmente, com o espetáculo “A Ponte”, de Daniel MacIvor, e atuou ao lado de Bel Kowarick e Debora Lamm.
“Foi cheio de dificuldades e, ao mesmo tempo, um privilégio poder fazer teatro no Brasil, em quatro cidades diferentes, com pessoas que admiro e gosto de trabalhar”, enaltece. A peça conta a história de três irmãs que se reencontram por conta da iminente morte da mãe. Elas não se reconhecem mais e precisam tentar se reconectar. “Eu fui muito feliz fazendo essa peça, e BH foi muito especial, por conta da identificação do público daí com a temática”, finaliza.
Raphael Vidigal
Fotos: Jorge Bispo/Divulgação; e cena do filme “O Diabo a Quatro” (2004), respectivamente.