Marcellino, Pão e Vinho

“Voaram telhados, voaram andaimes, voaram coisas imensas:
os ninhos que os homens não viram nos galhos,
e uma esperança que ninguém viu, num coração.” Cecília Meireles

marcellino-vinho

Partiu-o ao meio. Não notou a natureza amedrontada do objeto estático. Mal lhe escapara o pé descalço a obstruir luz para couves e verduras outrem, quanto mais a natureza estática do objeto amedrontado. Feriu-lhe o bojo desprovido de pudor. Arregaçou as mangas encardidas do fiapo que protegia o próprio cadavérico corpo e iniciou o calvário da natureza inapta. Em momento algum se precipitou, nem se demorou além do necessário, a morte recolheu-se ao abrigo num acordo tácito.

A tigela, em frente, borbulhava com o leite fresco colhido das tetas da mais gorda vaca durante os primeiros raios daquela manhã. Calor e angústia aperfeiçoavam a pagã caminhada a desembocar no rito obrigatório. Aquela abatida de intrigas e indispensável desordem à fome terrena do menino magro. Agora, enquanto descia o líquido fresco que esquentava boca, pulmão, estômago, possuía nome, e um branco bigode, invisível e risonho, da infância apressada.

Os frades, então, o chamaram. Como de costume, tropeçou em qualquer prego solto da tábua a proteger o chão do convento pobre. Aproximou-se ansioso, descuidado, e ao intento de recolocar o prego no lugar disposto uma mão tomou-o obstinadamente, com a violência dos condenados. Encarou-o, mesmo sem olhos, e mesmo onde a boca confundia-se a uma sepultura vestida de rosas percebeu os espinhos maduros despencando em lentidão rumo às cansadas tábuas.

Partiu-o ao meio. Não notou a natureza amedrontada do objeto estático. Mal lhe escapara o pé descalço a obstruir luz para couves e verduras outrem, quanto mais a natureza estática do objeto amedrontado. Feriu-lhe o bojo desprovido de pudor. Arregaçou as mangas encardidas do fiapo que protegia o próprio cadavérico corpo e iniciou o calvário da natureza inapta. Em momento algum se precipitou, nem se demorou além do necessário, a morte recolheu-se ao abrigo num acordo tácito.

A tigela, em frente, borbulhava com o sangue quente colhido das difíceis veias de Marcellino durante os crepusculares bocejos da chuvosa tarde. Esmoreceu junto ao frio e a tranqüilidade veio ter com tua alma. Aquele estado repousante, em que a fome cala no pão, e a sede cala no vinho, denotou-se de maneira intrínseca, ao celebrarem, ano após ano, a data. Abençoaram a memória, intentando ao não esquecimento, ao alçarem-lhe à circunstância sagrada: Marcellino Santo.

No entanto, quem tem fome de mim não discorda, tudo o que Marcellino queria era um pedaço de pão, e um pouco de leite, a fim de acalmar o estômago. Posto que modificaram a lenda, e trocaram o líquido branco pela espessa camada tenebrosa do vinho tinto, é que não se deve acreditar em milagres repetidos oralmente.

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Raphael Vidigal

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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