Entrevistas: especialistas debatem o cenário do funk em BH

“a poesia
me chupa gostoso
prova o meu
gosto
me provoca me
morde me dá o
gozo” Bruna Kalil Othero

“Pulsos e camadas sutis que se acumulam, como um pano de fundo misterioso, uma camada de suspense que é liderada por um ponto minimalista, sinuoso, causando uma sensação estranha, um ritmo deslizante, solto, um tanto imprevisível”. Com essas palavras, o pesquisador e jornalista Gabriel Albuquerque, natural do Recife, procura desvendar a marca de um gênero que, não raro, é tachado de pobre, violento e pornográfico.

“O funk mineiro tem um toque espacial, evanescente, atmosférico e fragmentado. Eu diria que é um funk espectral”, completa Albuquerque, que faz referência ao uso de um beat (andamento rítmico) conhecido pelo nome de “panela”, “latinha” ou “garrafa”, em músicas como “Viciei Nessa Garota”, de MC Dennin, “Nóis É Bandido Vida Loka”, de MC L da Vinte, e “Bota Tudo Nela”, de MC Kaio, expoentes da nova cena belo-horizontina. Confira abaixo o depoimento de três especialistas sobre esse tema que está cada vez mais quente!

Maíra Neiva Gomes
Advogada popular, mestra e doutora em Direito pela PUC Minas, fundadora do Coletivo Observatório do Funk e co-coordenadora do Grupo de Pesquisa “Descolonialidade” da PUC Minas, responsável pelo eixo “Culturas Silenciadas”

1 – Como vê o atual cenário do funk em Belo Horizonte e o que mudou desde o seu surgimento?
Belo Horizonte tem longa história de funk, que se iniciou nos anos 90, na Quadra do Vilarinho. O funk belo-horizontino dessa época caracterizava-se pela forte adesão à vertente consciente, sendo Mc Caçula e Mc Papo os grandes ícones dessa época e que continuam em atividade. Ao longo dos anos, o funk de BH espalhou-se pelas favelas da região metropolitana, aderindo à outras vertentes e diversificando-se.

2 – Por outro lado, o que permanece desde o início?
Desde aquela época, até os dias de hoje, assim como no resto do Brasil, o funk é marcado pela forte presença nas periferias e pela perseguição sistemática do Estado, via ações policiais, que exercem certo tipo de controle estético cultural, violando direitos humanos e constitucionais.

3 – Qual é a característica que diferencia o funk produzido em Belo Horizonte e sua região metropolitana daquele produzido em outras partes do país, como Rio e São Paulo e quem são os principais nomes desse movimento?
O funk costuma dialogar com a realidade social histórica. As vertentes que se desenvolvem costumam acompanhar demandas sociais, assim como é característica de qualquer expressão artística. Quando ocorreu a inclusão da periferia via consumo, mantendo-se a segregação territorial racial, o funk O$tentação de SP ganhou destaque. Hoje, devido ao crescimento das forças conservadoras, o funk com temática sexual tem sido a vertente mais difundida no país. Essa característica retórica costuma ser vivenciada no país inteiro. Em termos de composição musical é que notamos diferenças regionais. Atualmente, o funk belo-horizontino tem sido marcado pelo “minimalismo”, termo elaborado por Gabriel Albuquerque, colunista do portal Kondzilla. O “minimalismo” caracteriza-se pela maior linearidade entre as alterações do grave e do agudo, o que requer dos DJs (que montam a composição melódica) uma maior criatividade para preencher esses “vazios”. Os Djs de Belo Horizonte costumam utilizar sons de vidros quebrados, entre outros, para efetuar a variação musical, como faz o DJ PH da Serra. No que diz respeito à linguagem discursiva, os Mcs belo-horizontinos costumam utilizar muito a inversão linguística (ressignificação de palavras. Bandido, por exemplo, ganha conotação positiva, assim como Bandida, Piranha, dentre outros). Há uma presença muito forte de denúncias, em tom de ironia, da segregação espacial, racismo, como se observa nas letras do Mc Rick do Morro do Papagaio. Uma influência muito forte vinda do Rio de Janeiro se pode notar no funk de BH é o uso da batida acelerada de 150 bpm (batidas por minuto). Ao contrário do RJ, ainda há pouca presença feminina (Djs e Mcs), o que é lamentável.

4 – Ainda há muito preconceito contra o gênero? Na sua opinião, qual a principal razão dessa recepção discriminatória?
Apesar de ser o estilo musical mais ouvido entre os jovens no Brasil, ainda observamos muito preconceito, tanto das instituições estatais, quanto da sociedade, incluindo até mesmo setores que se dizem progressistas. Em nossa opinião, o que fundamenta isso é o racismo brasileiro. Apesar do Brasil ser marcado pela forte presença das culturas afrodescendentes, desde a colônia há perseguição a essas culturas. Ocorreu com a capoeira, ocorreu com o samba, com o Rap e ocorre com o funk. Enquanto não há “legitimação branca” da cultura artística, essa sofre perseguição e preconceito. É importante compreender que as culturas afro descendentes são guardiãs dos valores sociais, filosóficos herdados das africanidades. Toda manifestação cultural afrodescendente vai carregar a corporalidade e linguagem que acompanharam o processo de Diáspora Africana. Nesse sentido, o funk, assim como a capoeira, o samba, o rap são expressões de resistência das culturas afro e, por isso, são combatidas pelo Estado e pela própria sociedade racista que mantém e aprofunda o processo de dominação inaugurado na colonização.

5 – A que se atribui o sucesso do funk em Belo Horizonte e como ele se relaciona com a população nas zonas norte e sul? Há muita diferença?
O Funk é um fenômeno no país inteiro. Para jovens, ele acaba sendo o espaço de manifestação e afirmação das identidades (gênero, orientação sexual, raça) que são oprimidas pelos grupos familiares, religiosos e sociais. Em BH, as Favelas ficam próximas aos bairros (zona norte e zona sul são divisões segregacionais de SP e não de BH). O funk ouvido no Morro (Favela) tem linguagem mais direta, interpretada pelo Asfalto (bairros de classe media e alta) como violenta. Artistas de funk já utilizam uma estratégia para driblar esse muro invisível. As músicas costumam possuir duas versões. Uma de Favela, com linguagem direta e já conhecida pela periferia e a versão de Asfalto, higienizada, com linguagem alterada (suavizada).

6 – Porquê, na sua opinião, o sub-gênero funk consciente tem perdido espaço para o putaria? Quais são as principais marcas de cada um deles?
É o atual momento social que vivemos. Há um crescimento do conservadorismo e de ataques as mulheres e LGBTs. O funk com temática sexual (o termo Putaria é depreciativo para as trabalhadoras sexuais) é um dos instrumentos de resistência desses segmentos sociais. Mas é importante ressaltar que o funk dialoga com a Periferia e não com o asfalto. A interpretação das lutas de mulheres e LGBTs nas Favelas é distinta desses segmentos no Asfalto, pois são realidades sociais distintas que geram afirmações e reivindicações diferentes. Aplicar interpretações generalizantes, homogêneas de reivindicações sociais impede a visualização desse fenômeno. O Funk consciente não perdeu espaço nas Favelas. As músicas são tocadas, são compartilhadas, cantadas e há uma aproximação do Rap com essa vertente do Funk (vide Favela 1, 2 e 3 que são músicas recentes com composição de rappers e funkeiros). A impressão de que o Funk Consciente perdeu espaço se restringe ao Asfalto que tem consumido mais o Funk com temática sexual higienizado.

7 – Qual a relação do funk com o meio social de onde ele emerge e o que ele traz de positivo para essas pessoas que costumam vir da periferia?
O Funk é uma expressão cultural afro-urbana, espaço de resistência e afirmação da cultura afrodescendente. Ele é de extrema importância – junto ao Rap – para a afirmação estética, cultural, corporal, linguística das Periferias. Nas Favelas, o primeiro contato das crianças com arte – às vezes, o único contato – se dá por meio da cultura Funk e Rap.

8 – De que maneira o funk se relaciona com temas que vêm ganhando destaque na sociedade, como feminismo, homofobia, machismo e racismo?
Quem abriu as portas do Asfalto para o Funk, ainda na década dos anos 2000, foi a cultura LGBT. O Funk é a porta de entrada para muitos artistas Trans – Pablo Vittar, Lin da Quebrada. Muitas letras de funk abordam os assuntos acima mencionados. Mas a abordagem, muitas vezes, se dá por meio de utilização de linguagem invertida. Ao contrário do que imaginam as pessoas, o funk com temática sexual inicia com mulheres, falando de sexo abertamente. Não pretendemos pintar um quadro fora da realidade. É obvio que as Favelas, assim como toda a sociedade brasileira, é permeada por machismo, LGBTfobia. Há essa presença no funk também. No entanto, o discurso de enfrentamento se dá dentro da realidade das Favelas. Pregar o aprisionamento de MCs e DJs pelo suposto crime de “apologia” é negar a capacidade da Favela e das mulheres e indivíduos LGBT que nela vivem de protagonizarem suas lutas sociais. Uma das pautas do Movimento de Mulheres Negras é o desencarceramento em massa. Ou seja, a “resposta” do feminismo universitário é completamente fora da realidade vivenciada por esses sujeitos nas Favelas. Acreditamos que temos um desafio que é possibilitar a inserção maior de mulheres e LGBTs no cenário Funk, como forma de construção de discursos que combatam o machismo e homofobia. Isso já ocorre com bastante intensidade. Mas, o mercado ainda restringe o acesso dessas artistas. Quanto ao racismo, o tema está também muito presente nas letras, como já dito acima. Em Belo Horizonte, o centro cultural Lá da Favelinha do Aglomerado da Serra questiona as posições fixas de gênero. Seus dançarinos, além de utilizar Vogue – estilo da comunidade LGBT dos abos 80 – invertem papéis de gênero, questionando abertamente os modelos de masculinidade. Suas roupas também o fazem. Rappers usam vestidos. Kdu dos Anjos usa muito rosa.

9 – Qual o segredo do sucesso do funk e o que ele tem a dizer de mais importante para e sobre os dias atuais?
Acredito que seja a defesa das identidades e liberdades. Afirmação de um novo conjunto de valores sociais, que leve em consideração as especificidades das pessoas das periferias. O funk é ágil, construído pela improvisação e criatividade. Nada nele é fixo e imutável. Ele vai fluindo e se remodelando.

Carlos Palombini
Professor de Musicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

1 – Como vê o atual cenário do funk em Belo Horizonte e o que mudou desde o seu surgimento? Por outro lado, o que permanece desde o início?
Estudo o funk do Rio, e o subgênero proibidão em particular. Acompanho o funk de Belo Horizonte esporadicamente e, por assim dizer, à distância. O jornalista Gabriel Albuquerque, de Recife, o conhece melhor que eu. Em 16 de fevereiro de 2017 ele publicou o artigo “Funk de BH: o surgimento de um ‘ambient space funk’?” em seu blog, O Volume Morto, http://bit.ly/2Lw7aIb.

2 – Qual é a característica que diferencia o funk produzido em Belo Horizonte e sua região metropolitana daquele produzido em outras partes do país, como Rio e São Paulo? Quem são os principais nomes desse movimento?
Com a GR6 e a KondZilla, cujos canais de YouTube estão entre os mais influentes do mundo, com os DJs-produtores Jorgin e Perera, e os MCs Fioti (também produtor), Kevinho e Livinho, São Paulo representa hoje o mainstream do funk. Já o Rio de Janeiro, com os DJs de YouTube Luciano do YouTube e Iasmin Turbininha, os bailes da Gaiola, no Complexo da Penha, e da Nova Holanda, no Complexo da Maré, e o 150 BPM dos DJs Polyvox e Rennan da Penha, representa o underground. Mas isso é muito genérico porque há também o mainstream carioca de Anitta e Dennis DJ. E um underground paulista: veja “Maquiavélico: senta pros louco”, do MC Lan, em produção dos DJs Lan RW e Ian Belmonte (24 abr. 2017), ou as produções do DJ Jorgin para “Deu onda”, do MC G15 (22 nov. 2016), com sua harmonização heterodoxa, e do MC Fioti para “Bum bum tam tam” (8 mar. 2017), dele mesmo, com vocal gravado em celular. O fato é que quando “Deu onda” se aproxima do meio bilhão de visualizações e “Bum bum tam tam” atinge um bilhão, não se pode falar em underground. O funk de São Paulo elabora, estiliza e dissemina inovações do Rio e de Belo Horizonte. Entre os belo-horizontinos, destaco “Pablo Escobar”, do MC Wellerzin, em produção do DJ Swat (8 dez. 2016), e “Cobiçadas do Twitter”, do MC Rick, produção dos DJs PH da Serra e TG da Inestan (27 fev. 2018). Quando Gabriel publicou seu texto, no início do ano passado, ele citou especificamente os bailes do Subaco, na região Noroeste, e da Inestan, na Nordeste. E observou que emergia ali “uma sonoridade menos incisiva, com arranjos mais espaciais, etéreos, mínimos e com maior destaque para os tons agudos”. Gabriel conclu: “O arranjo mínimo, o agudo, toques de lata e outros sons do funk de BH estão aparecendo reprocessados em diversos funks de São Paulo”. A título de ilustração, compare “Pablo Escobar”, citada acima, com a produção do DJ Perera para “Fazer falta”, do MC Livinho (18 maio 2017).

3 – A que se atribui o sucesso do funk em Belo Horizonte e como ele se relaciona com a população nas zonas norte e sul? Há muita diferença?
Atribuo o sucesso do funk de Belo Horizonte a seu enraizamento local, ao forte senso de identidade que ele carrega, ao fato de estar imbricado nos bailes, à inventividade de seus criadores, e a seus circuitos de disseminação. Não sei se há diferença entre o que se produz na Zona Norte e na Zona Sul, pois me parece haver uma circulação de pessoas e ideias. É mais fácil fazer recortes de tempo que de local.

4 – Por que, na sua opinião, o subgênero funk consciente tem perdido espaço para o putaria? Quais são as principais marcas de cada um deles?
No funk do Rio de Janeiro o grande período do consciente foram os anos 1990; seu modo de disseminação, fitas cassete, vinis, CDs e programas de rádio; e seu espaço, os bailes de clube, geralmente em territórios neutros, no asfalto, para os quais convergiam bondes de diferentes comunidades. Ali o consciente tinha a função de amainar conflitos. Com a supressão, ao final da década, dos principais bailes de clube, o epicentro do funk se desloca para as comunidades, onde conflitos se coíbem por outros meios. Sonoridades e temáticas tornam-se mais provocativas e os feitos bélicos ou eróticos são tematizados musical e teatralmente no proibidão e na putaria, disseminados em CDs domésticos produzidos em grande escala, canais do YouTube ainda não monetizados, plataformas P2P, blogs, fotologs etc. Ao final da primeira década do século, políticas de segurança pública erradicam os grandes bailes de comunidade e o proibidão some de vista por volta de 2015. Após as Olímpiadas de 2016 as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) assumem sua falência e os bailes retornam, mas os DJs se sobrepõem aos MCs e a putaria prevalece. Desse ponto de vista, o proibidão foi uma forma de consciência que prosperou de 1994 a 2014, enquanto o consciente perdia sua função, seu público e seu apelo. A putaria lida com uma questão premente para a adolescência e é uma forma de autoconsciência juvenil.

5 – Qual a relação do funk com o meio social de onde ele emerge e o que ele traz de positivo para essas pessoas que costumam vir da periferia?
A potência do funk é a da criatividade das classes populares em conexão. Ele fornece um campo de exercício da técnica e da musicalidade com possibilidades efetivas de sucesso econômico.

6 – De que maneira o funk se relaciona com temas que vêm ganhando destaque na sociedade, como feminismo, homofobia, machismo e racismo?
Homofobia, machismo e racismo são dados da sociedade e do Estado que não poderiam deixar de estar presentes no funk como um todo. Por ser música, ele oferece a possibilidade de lidar com esses temas no campo dos jogos da arte, com soluções em atos de performance.

7 – Qual o segredo do sucesso do funk e o que ele tem a dizer de mais importante para os dias atuais e sobre eles?
O sucesso do funk advém do fato de dar respostas criativas imediatas aos imperativos de cerceá-lo e erradicá-lo, num processo de longa duração. Quantos gêneros musicais foram capazes de manter vivo, por três décadas, um underground? Enquanto racismo e criminalização da pobreza forem fenômenos estéticos acobertados pelo bom gosto pessoal, haverá funk. Haverá afronta e felicidade.

Gabriel Albuquerque
Jornalista

1 – Como vê o atual cenário do funk em Belo Horizonte e o que mudou desde o seu surgimento?
Antes de chegar aos artistas contemporâneos, é preciso recapitular dois momentos do funk de Belo Horizonte. Embora pouco documentado e discutido, o funk de BH é tão antigo quanto o do Rio de Janeiro. Descende dos bailes blacks dos anos 1970 que, por volta de meados da década de 1980, passam a incorporar uma gama de sonoridades eletrônicas afro-americanas como o freestyle, o miami bass e o electro. É na virada dos anos 1980 para os 1990 que a cena funk de BH vai se estruturando, tomando seu próprio corpo. O grupo mineiro Protocolo do Subúrbio é incluído com a música “Tonheta” no LP “Funk Brasil Volume 2” (1990), do DJ Marlboro. Depois é a vez do União Rap Funk no LP “Funk Brasil 3” (1991), desta vez com duas faixas, “Melô da Paula” e “Dulcenira”. No ano seguinte a loja de LPs Black and White, então localizada na Praça 7, financiou a produção do álbum coletivo “Fábrica Ritmos” (1992). Produzido à seis mãos pelos DJs A Coisa, Joseph (residente do “Quarteirão do Soul” e produtor do hit “Piriguete”, do MC Papo) e Marcelo (integrante do União Rap Funk), este álbum é um marco do funk mineiro precisamente por apresentar estes artistas e a cena funk local, como um cartão de visita. Também é trabalho que demonstra o elo entre o funk, rap e os diversos gêneros musicais distintos da black music eletrônica — vale ressaltar que o álbum foi gravado apenas com uma bateria eletrônica R8 e sintetizador W30, ambos da marca Roland.

Na virada dos 1990 para os 2000, o funk mineiro assume de fato a sonoridade do pancadão. Entretanto, com uma característica particular: a acentuada influência do rap, tanto dos artistas locais (como SOS Periferia) quanto de outros estados (Racionais, Xis, Câmbio Negro), bem como do funk da baixada santista (Careca e Pixote, Bola e Betinho, Totto e Kbça e Danilo e Fabinho, que frequentemente faziam shows em BH). Deste modo, MCs como Jefinho (solo ou em dupla com Leo), Tom e Jr., Moscão e Caçula consolidaram em Belo Horizonte a vertente do funk consciente, pela qual o funk mineiro se notabilizou em âmbito nacional. Os funkeiros contemporâneos promovem uma ruptura estética radical em relação a estas duas fases anteriores. Os MCs abarcaram outras levadas vocais, mais soltas e menos “quadradas” comparadas às anteriores. Em vez de tentar reproduzir os flows dos artistas americanos ou dos melôs oitentistas, artistas como Papo, Delano, Rick, Kaio, Wellerzin, Dennin e L da Vinte encontraram cada um a sua própria voz suas próprias matizes e referências. O mesmo vale para DJs/produtores como PH da Serra, Cheab, Swat, Vinicin do Concórdia, TG da Inestan, João da Inestan, Fiuza, Deluca e outros mais que experimentam narrativas sonoras híbridas e fragmentadas (misturas com trap, arrocha, EDM, paisagens sonoras, loops que acumulam diferentes tipos de tambor etc). Além da própria capacidade criativa dos artistas, essa mudança decorre dos avanços tecnológicos, barateamento e maior facilidade de acesso aos equipamentos equipamentos e softwares musicais e ainda da mudança de ambiente físico dos bailes. Tradicionalmente os bailes de BH ocorriam em clubes fechados, como o Baile da Vilarinho. No entanto, essa nova sonoridade de Belo Horizonte se desenvolveu nas festas abertas em muitas favelas espalhadas pela cidade no modelo de “fluxos”, como ocorre em São Paulo.

2 – Por outro lado, o que permanece desde o início?
Em termos musicais, acho que muito pouco ou mesmo nada das primeiras fases permanece no funk mineiro atual. A única permanência evidente me parece ser o impulso criativo-experimental e a potência imaginativa dessa população periférica, que reinventa dispositivos sônicos para criar sua própria expressão, sua própria linguagem artística e seus modos de encenar suas vidas.

3 – Qual é a característica que diferencia o funk produzido em Belo Horizonte e sua região metropolitana daquele produzido em outras partes do país, como Rio e São Paulo?
A arquitetura sonora dos DJs/produtores de Belo Horizonte é muito singular. Em vez de acelerar o BPM (batidas por minuto) como no Rio de Janeiro, os mineiros trabalham com levadas mais lentas e investem na construção de atmosferas sonoras, além do beat em si. Há pulsos e camadas sutis que se acumulam discretamente na música, como um pano de fundo misterioso, uma camada de suspense que é liderada por um ponto minimalista e sinuoso — poderia citar “Viciei Nessa Garota” (do MC Dennin com produção dos DJs João da Inestan, TG da Inestan e Lukinhas da Inestan), “Eu Quero é o Toba” (do MC Rick e DJ Cheab), “Nóis é Bandido Vida Loka” (MCs L da Vinte e AK com DJ João da Inestan e DJ TG). Outra característica marcante é a utilização de uma gama de tambores de sonoridades distintas num mesmo beat, causando uma sensação estranha, um ritmo deslizante, solto, um tanto imprevisível — caso de “Bota Tudo Nela”, do MC Kaio com os DJs TG e João da Inestan). O funk mineiro tem um toque espacial, evanescente, atmosférico e fragmentado. Eu diria que é um funk espectral. Não é diferente apenas do funk produzido em São Paulo e Rio, mas uma construção única na música eletrônica como um todo. O que não quer dizer que exista paralelos — no funk mineiro ouvimos ecos da ambient music e do cloud rap, por exemplo.

4 – Quem são os principais nomes desse movimento?
Os principais MCs são estes que citei, mas acredito que para compreender a sonoridade espectral de BH é preciso se guiar pelos produtores musicais, que tramam essas fonografias experimentais. A saber, os DJs PH da Serra, Cheab, Swat, Vinicin do Concórdia, TG da Inestan, João da Inestan, Fiuza, Deluca, entre outros.

5 – Porquê, na sua opinião, o sub-gênero funk consciente tem perdido espaço para o putaria? Quais são as principais marcas de cada um deles?
Em termos gerais, o funk consciente é aquele que apresenta uma crítica social, que busca representar a “voz do povo”, descrever a “realidade” ou mesmo “revelar” uma verdade encoberta. A putaria é vista no polo oposto, tratando das “frivolidades” do corpo e da libido. No entanto, como em todas áreas artísticas, essas demarcações existem apenas como uma ferramenta de mediação e localização. Basta uma escuta mais aberta para perceber como as músicas dos funkeiros dobra, retorce, penetra, subverte essas clivagens sem a mínima reverência. Um bom exemplo é o MC Rick, que com frequência tece críticas irônicas aos tradicionais valores das ditas elites culturais ou da classe média letrada em suas letras. Em “Menina da Zona Sul”, parceria com o MC Kaio produzida por PH da Serra, Ray Lais e Frog), ele zomba do ensino superior dizendo que seu nome é o mais falado na PUC Minas, no Pitágoras, na UFMG, na Uni BH e no ENEM. É como se ele, enquanto favelado, revertesse a aura fetichista com o qual é visto ou t pela tratado historicamente pela classe média brasileira e seu racismo latente — isto é, ele se impõe como agente, não objeto da história. Outra faixa brilhante nesta linha é “Cobiçadas do Twitter”, com os DJs TG da Inestan e PH da Serra. Aqui a mãe de uma jovem de classe média descobre que ela “tá saindo escondida pra poder trombar o TG”. Rick então recomenda à menina que ela procure suas músicas no YouTube para provar à mãe que TG, PH e Rick “não são bandidos”, mas sim artistas, “muito bem de vida”. Não consigo deixar de ouvir isso como uma crítica de ironia fina ao próprio estatuto da arte e do artista como um ser autossuficiente, isolado em uma torre de marfim, acima do bem e do mal, bem como ao jogo escorregadio entre a arte institucional e criminalidade (há tempos o mercado de arte é mecanismo de lavagem de dinheiro). E há um tom de resposta raivosa àquela expressão “maldita inclusão digital”, que os comentaristas de internet sempre marcavam quando o funk ostentação vivia seu auge, porque as “cobiçadas do Twitter” se interessam pelo maloqueiro com trejeitos de bandido. Portanto, o funk putaria não trata de uma sexualidade cosmética ou objetiva (não é “pau na buceta, buceta no pau” ad infinitum). As abordagens agenciam um espectro mais amplo de questões. Há sempre mais. A putaria é onírica e os corpos são também campos de batalhas política. Cabe ao ouvinte escutar de ouvidos abertos.

Quanto à queda da vertente consciente e consolidação da putaria, acredito que isto faz parte de um fenômeno cultural maior. O rap, outra música periférica, “irmã” do funk, historicamente situada no campo do “consciente” também não trabalha mais sob essa perspectiva. — pensemos nas letras do Djonga, Baco Exu do Blues ou Diomedes Chinaski. Mesmo o Racionais MCs, tão anexado a esta imagem de crítica social, trabalhou outras possibilidades poéticas em seu último álbum, o “Cores & Valores”. Uma conclusão comum — e precipitada e preguiçosa — é a de que a música brasileira está retrocedendo em termos de qualidade, que as pessoas estão mais burras e menos exigentes. Um cegueira nostálgica que resulta numa visão apocalíptica. Por outro lado, eu tendo a concordar com o J. G. Ballard quando ele diz que a ficção realista perdeu seu vigor exatamente por não mais descrever o mundo em que vivemos. Não podemos mais fazer uma clara distinção (como era possível, digamos, no auge do romance realista do século 19) entre o mundo externo do trabalho e do comércio e o mundo interno dos sonhos, esperanças e ambições . É exatamente o contrário: a ficção nos rodeia e nos constitui. Estamos criando narrativas de si mesmo a todos os momentos nas redes sociais e o mundo externo tornou-se uma paisagem de mídia, continuamente disputada entre forças da publicidade, política, militâncias, mercado… Enfim, a ficção cria nosso ambiente. E para pensar e falar sobre esse modo de viver contemporâneo é necessário abandonar o realismo puro e inventar outros mundos, outros enunciados, criar outras narrativas e fantasias. É uma questão mais extensa que diz respeito ao nosso modo de ser, estar e falar no/do mundo.

Raphael Vidigal

Fotos: Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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