Entrevista: Todos os T´s e acentos nos IS de Tetê Espíndola

*por Raphael Vidigal

“A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
mas não pode medir seus encantos.
Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam.” Manoel de Barros

Tetê Espíndola nunca foi artista de um voo só. E não é espantoso para os que conhecem de perto a trajetória da cantora e instrumentista, além do espanto de admiração já recorrente, que ela alce voo duplo ao lançar o álbum que contém duas fases distintas da carreira. Com link para venda no site oficial da artista, o novo trabalho agrega no mesmo encarte os discos “Pássaros na Garganta”, lançado em 1982 com músicas de Tetê, Arrigo Barnabé e Carlos Rennó, e que lhe rendeu à época o prêmio APCA de artista revelação, e “Asas do Etéreo”, totalmente inédito, com participações deliciosamente ao sabor de Tetê.

“O álbum duplo já foi lançado em São Paulo, no SESC Vila Mariana, em março, com a participação de todos os convidados”, revela. Entre estes figuram nomes habituais das andanças pelos ares de Tetê, como Arrigo Barnabé, DuoFel, Felix Wagner, Paulo Lepetit, e outros convocados para esta ocasião especial, cuja sintonia com o trabalho da artista é inegável. Lá estão Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Jacques Morelenbaum, Almir Sater, Trio Croa, Teco Cardoso, Bocato, Marcelo Pretto e o rebento natural da artista, o filho querido Dani Black. Com lançamento pelo selo SESC, a arte da caixa ficou a cargo de Lula Ricardi.

TIMBRES
Lula também é o autor da capa do álbum “Evaporar”, lançado por Tetê em 2007. Ao todo, a artista contabiliza 17 títulos em sua discografia, já contando com o novo trabalho, além de participações especiais em outros discos. Natural de Mato Grosso do Sul, ela apareceu para a cena em 1978, com o disco “Tetê e o Lírio Selvagem”, já prenunciando o gosto pela natureza e a inquietude. Em “Asas do Etéreo” Tetê é a única responsável pela autoria de 3 canções. “As outras são com parceiros especiais, como o Carlos Rennó, a Marta Catunda, Arnaldo Black, Luhli, Bené Fonteles e Breno Ruiz”, entrega, sem perdão, os comparsas nessa aventura.

No total, “Asas do Etéreo” presenteia o ouvinte com 12 faixas, cada qual com uma peculiaridade. “A ideia inicial foi a escolha dos timbres dos instrumentos em relação à sonoridade da craviola, mas depois as próprias composições foram pedindo as participações”, avalia. Habituada a ouvir bem a natureza e o que pedem seus instrumentos, Tetê não se fez de rogada e atendeu ao pedido de suas criações. “No caso de ‘Trigo do Amor’ senti que além da guitarra Dani Black deveria cantar e isso abriu espaço pra performance da voz de Arrigo Barnabé em ‘Diga Não’ e a percussão corporal de Marcelo Pretto no ‘Triste Acauã’”, explica com o raciocínio interligado de sentimentos e intuições.

TEMPEROS
Ainda sobre as participações é óbvio que não poderia faltar a espontaneidade e a loucura lúcida do incontrolável Hermeto Pascoal. Como de costume, ele não obedeceu à previsibilidade. “No caso de Hermeto ele começou a gravação de ‘Crisálida-Borboleta’ experimentando o piano, mas acabou sentindo que era a escaleta que deveria tocar, e isso definiu a participação de Egberto Gismonti com o piano na faixa ‘Acácias’, que foi a última gravação do projeto”, lembra. Como se pode ver cabe no tempero de Tetê um tanto de flora, fauna e a liberdade de voar ao ritmo do coração. “Todos esses artistas foram escolhidos por ter uma ligação com minha trajetória”, assinala.

Com alguns deles, como o DuoFel e Felix Wagner a artista toca desde 1982. Outro “velho de guerra”, Paulo Lepetit participa como músico e assina a produção. Com uma estética própria, oriunda da experimentação entre a vivência no campo e o contato com a natureza urbana, Tetê deve parte do estilo a um amigo antigo. “Através de Arrigo Barnabé tive contato com uma nova linguagem na música, que não conhecia, já que a minha referência musical era guarânia e chamamés. Entrei nesse mundo ‘dodecafônico erudito urbanoide’ e fizemos músicas que marcaram a ‘Vanguarda Paulista’, como ‘Paisagem Fluvial’ e ‘Sertão’”, rememora.

TAMARANA
Desta última parceria citada nasceu o que “Arrigo denominou como ‘sertanejo lisérgico’”, conta, bem na canoa da irreverência e pluralidade que engloba o ser e estar dos dois. E a parceria rendeu ainda outros frutos. “Fui a primeira a gravá-lo em LP, cantando ‘Tamarana’, além disso participamos do festival MPB Shell com a valsa ‘Londrina’, foi uma troca muito rica e uma vivência intensa”, discorre. Musa inspiradora da “Canção dos Vagalumes”, de Arrigo Barnabé, Tetê socorreu o amigo sendo “vocalista de urgência na banda ‘Sabor de Veneno’ durante um período”. Sorte da música brasileira.

Que só conheceu Tetê nos palcos porque ela decidiu ser cantora depois de ouvir Elis Regina. Antes, porém, diz que “nasci ouvindo minha mãe Alba cantar e os ensaios dos meus tios Miranda, trigêmeos, tocando música clássica ao piano”. A formação também teve o apoio dos trios paraguaios, na adolescência, muito famosos na região centro-oeste do país, e a definição veio enfim com aquela considerada até hoje a maior cantora do Brasil. “Ouvir Elis Regina foi o que despertou em mim a vontade de ser uma cantora profissional”, assume. Já “a instrumentista se concretizou quando conheci a craviola que meu irmão Geraldo ganhou, dali em diante comecei a compor nesse instrumento e nunca mais o larguei”.

TIPICAMENTE
E não poderia ser diferente, a craviola, um instrumento tipicamente brasileiro, foi inventada pelo compositor Paulinho Nogueira, natural de Campinas, interior de São Paulo, em 1969. Com 12 cordas e um som misto entre cravo e viola não é muito difícil entender o porquê chamou tanto a atenção de Tetê. Para ela, a inspiração ainda nasce do mais simples, o que está cheio de riqueza e luminosidade. “Gosto de olhar a paisagem, viajo muito pelos interiores e sempre escuto o som dos lugares onde vou, aprendendo sempre uma emissão de canto de passarinho”, diz.

A voz, aliás, de um agudo característico, sempre foi um dos trunfos que permitiu a Tetê Espíndola demarcar lugar de destaque na música brasileira. É difícil pensar em algo que se aproxime, e hoje, com a maturidade, ela acresceu a eles diferentes sonoridades, indo até o grave mais firme. Não por acaso apresentou-se em dueto com o conterrâneo de estado Ney Matogrosso. Outro projeto atual da imparável Tetê é o belíssimo “Água dos Matos”, que percorreu o pantanal em busca de sons e imagens e levou às comunidades ribeirinhas cultura e arte. “A expedição ‘Água dos Matos’ nos rendeu 15 músicas compostas em parceria ora com Lucina, outrora com Alzira E., Jerry Espíndola e Carol Ribeiro”, cita.

TEMPO
“Água dos Matos” foi registrado em CD no ano passado, revela a entrevistada, que acrescenta o adjetivo “encantadora” para explicitar a forma dessa gravação. “Ainda não lançamos oficialmente com shows, mas já têm uns dois anos que canto uma música nos meus espetáculos e conto com a interatividade da plateia, é o ‘Convite’, sempre um sucesso”, orgulha-se. Quem quiser dar uma conferida pode procurar no Youtube que lá está a música. Em relação ao atual cenário da música brasileira Tetê aponta diferenças de divulgação e apreço. “Hoje em dia, em função da internet, os espaços são outros”, afirma.

Para ela, “o contato com muitos artistas e trabalhos em vídeo deixa o ritmo de divulgação muito mais ‘alucinante’ do que nos anos 80”. “Né?”, diz a artista como que procurando uma afirmação da sentença. Ela vê em casa como o processo se transformou. “O meu filho Dani Black optou por lançar um EP ao vivo que tem milhares de acessos na internet. A música dele assim se espalha mais rapidamente do que se tivesse lançado um CD objeto”, considera. “Mas eu sou do tempo do contato com este CD, o encarte, e meus fãs também”, avaliza. Como diz o poeta concreto Augusto de Campos, o som de Tetê é entre o “antigo e novo, um sabor agridoce”.

TANTO
Tetê Espíndola respira arte como quem vive, literalmente. Cercada de artistas em toda família ela estende os braços para outras áreas deste conhecimento abstrato. Entre elas, as artes plásticas. “Meu irmão Humberto Espíndola, artista plástico, criou a ‘bovinocultura’”, quadros de cortes fortes inspirados, claro, no animal principal da atividade. “Eu sempre acompanhei de perto essa paixão dele pela pintura e pela história das artes. Minha cunhada, Bia Black, também faz parte desse ramo, e lida com as cores de uma maneira muito especial, eu adoro”, elogia. Já na literatura aponta com agulha afiada sem medo de errar o alvo, é precisa. “Paul Auster e a poesia de Manoel de Barros”, destaca.

Conhecida nacionalmente após o estouro de “Escrito nas Estrelas” em 1985, Tetê conta a história especial dessa mística música. “Carlos Rennó me apresentou Arnaldo Black, e depois de estarmos casados há 3 anos Arnaldo compôs a música e eu sugeri ao Carlos Rennó para escrever a letra. Ele prestou uma homenagem ao nosso amor que realmente estava escrito nas estrelas”, emociona-se. O feito não parou por aí, a música entrou no “Festival dos Festivais e ganhou, foi um grande momento”, relembra. Tanto tempo de carreira, inspiração e poesia não faz Tetê querer parar por aí, ela ainda “sonha com um mundo melhor” e faz referência aos “preferidos” da música erudita que a dão tal sentimento. “Villa-Lobos e Erik Satie”, outra mistura entre a província e a cosmopolita, eis que Tetê, com todos os T´s e todos os acentos nos IS quer voar mais ainda.

DISCOGRAFIA
1978 – Tetê e o Lírio Selvagem
1980 – Piraretã
1981 – Londrina
1982 – Pássaros na Garganta
1985 – Escrito nas Estrelas
1986 – Gaiola
1991 – Ouvir / Birds
1994 – Só Tetê
1996 – Canção do Amor
1999 – Anahí
2001 – Vozvoixvoice
2002 – Fiandeiras do Pantanal
2004 – Espíndola Canta
2005 – Zencinema
2007 – Evaporar
2008 – Babeleyes
2014 – Asas do Etéreo

Fotos: Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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