Entrevista: Marina Lima

“Para se ser um bom filósofo é preciso ser seco, claro, sem ilusões.” Stendhal

Maneira de Ser

Haroldo de Campos, em poema, chama-a de “felina”. Nelson Motta preferiu os adjetivos “arisca” e “arredia” para defini-la. A paixão por cachorros, em especial os três do clã (Carola, Pedro Juca e a saudosa Maroca), coloca-me na cuca uma questão: a convivência plena entre cães e gata é, então, possível?

Descobertas pinçadas com a leitura do livro “Maneira de Ser”, recém-lançado pela editora Língua Geral, em primeira aventurança da compositora por esses mares salgados. A capa, azul, e a arte, minimalista, traduzem esteticamente o oceano largo em conteúdo da entrevistada.

CONCISA
Marina dispara uma gostosa e interminável gargalhada, recheada de graves roucos, antes de responder à pergunta. “Não sei bem se sou gato, acho que estou mais para cachorro. Mas sou mesmo é gente”, pontua.

A lisonja com os elogios fica clara quando se refere à Haroldo de Campos como um “mestre”, e toca na busca pela concisão dentro da própria obra. “Não gosto de excessos, nem sou afeita a derramamentos. Acho que com o tempo estou aprimorando isso, chegando mais perto do essencial”, afirma.

CLÍMAX
O tênue fio que divide o vulgar do sublime, como atestado pela escritora em entrevista republicada no livro, e a elegância com que percorre tais limites é sintetizada numa frase: “Não pode atingir a frieza, mas quanto menos enfeite, melhor”. Esta seria a receita nada óbvia com que conduziu toda a carreira, e em especial o mais recente disco, “Clímax”, de 2011.

Vanessa da Mata, uma das convidadas do álbum, é saudada na faixa “A Parte que me Cabe” com uma acalorada recepção de Marina, propositalmente alocada no início da música. “Sou louca com a voz dela, a maneira como escreve, fiz aquilo para mostrar à pessoas o orgulho enorme que estava sentindo, não me contive”, confessa.

MALÍCIA
Está nítido que a naturalidade da inserção do afago foi totalmente calculada. Marina reitera tese propagada nas páginas brancas do livro. “O instinto e a intuição são importantes, é matéria-prima. Mas é necessário aprimorar, burilar, inserir critérios artísticos”, tateia com sabedoria no escuro em que peleja dedicada.

Outros encontros do último disco foram com Adriana Calcanhotto, parceira de “Não me venha mais com o amor”, em virtude de “afinidades e vontade de repetir a dose” (a gaúcha gravou de Marina a canção “Três”, no disco Maré), e Samuel Rosa, com quem divide os microfones em “Pra Sempre”. “Desde ‘Garota Nacional’, grande estouro pop do rádio, ele me impressiona, porque é uma canção maliciosa e inteligente”, afere.

DARK
A presença do cantor mineiro nas cadeiras da plateia que assistia ao show Pierrot, de 1998, “tocou profundamente o coração” de Marina: “Por ser um espetáculo meio dark, à margem, fiquei surpresa quando o vi ali”, diz.

Fugindo de rótulos por necessidade, e não por provocação, assim é Marina, que declara ter se aprofundado em campos poéticos e melodiosos (inventou, por exemplo, a palavra “Fullgás”, numa das muitas canções com o irmão e poeta Antônio Cícero), para se “traduzir, existir, desvendar um lugar novo. Nisso todo mundo é igual, e é justamente aí que somos únicos”, filosofa ressaltando verso d'”A Parte que me Cabe”.

LOUCA
Alvin L., nome recorrente na fonografia da compositora, é o responsável por cunhar a frase “Marina gosta de música louca”, muito bem recebida pela mesma: “Minha essência é criar, ir além. Gosto de movimentos que assombram o previsível, fico maluca com coisas inesperadas e potentes”, esbalda-se no tema do qual não se cansa de falar. “Adoro propor conceitos novos, desafiar velhas fobias, sou literalmente invadida por uma felicidade incorruptível”.

Beatles, Tropicália, Tom Jobim e Nirvana, que reacendeu-lhe o interesse pelo rock, foram referências, tal qual Elizeth Cardoso. Mas,como cantora, “Gal Costa foi o grande farol”, invoca ao repercutir a luminosidade da intérprete baiana.

POLÊMICA FUNK
O fato de ter sido uma das pioneiras a adentrar o terreno prioritariamente masculino da composição musical é visto com tranquilidade: “Na verdade, não me lembrava disso quando surgi, depois foi que me atentaram”.

No LP de estreia, Marina gravou Dolores Duran, em polêmica versão funk do clássico “Solidão”, e Angela Ro Ro, ao colocar a voz em “Não há cabeça”. “Gravei Dolores por sugestão do André Midani, um homem muito inteligente, que era o presidente da gravadora Warner, e a Ro Ro porque me apaixonei por aquela música”. E não se faz de rogada quanto à importância da intervenção: “Hoje há ótimas compositoras, abrimos caminhos”.

LIVROS 
É a primeira vez que Marina ousa aterrissar sua arte sob a etiqueta da literatura, ao menos de forma explícita para a indústria do meio. Para isso, desfia fios do carretel repousado em sua cabeceira com a italiana Sílvia Avallone, autora do contemporâneo sucesso ‘Aço’ (“recente descoberta”, acentua), e os tradicionais João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Stendhal, além das crônicas de Fernanda Torres e Danuza Leão.

O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948-1996), aparece no livro com bela crítica a respeito do trabalho da cantora, de 1994. “Ele foi o primeiro a apresentar uma literatura pop no Brasil, independente, distante do meio acadêmico”.

Marina não o conheceu pessoalmente, nem teve a oportunidade de ler o texto na época, o que contribuiu para impedi-la de manter-se em pé. “Com certeza teria sido um estímulo, uma injeção de ânimo e até um consolo para continuar, e talvez aguentaria melhor os trancos”, confirma, ao aludir à depressão sofrida que a afastou dos palcos e estúdios na mesma década.

O amigo Candé Salles, companheiro nas horas boas e más, é quem produz no momento um documentário sobre o autor de “Onde Andará Dulce Veiga?”.

MORAL
Por outro lado, uma crítica negativa que chega a comparar o trabalho de Marina a “música para sala de dentista”, escrita por Hélio Muniz, é também reproduzida no livro. “O artista está sujeito a isso, e eu tinha de aprender a lidar, passamos por várias provações. É penoso, mas como fala Caetano Veloso, ao mesmo tempo é ‘divino, maravilhoso’. Hoje acho graça”, encerra.

A mistura de gêneros, na concepção de Marina, não deve passar somente pelo modelo da beleza grega ou da vergonha alheia, vigente e indigente. Alvo de críticas contumazes da imprensa na época em que registrou a canção “Uma noite e meia”, segundo ela “uma precursora do axé”, de Renato Rocketh (muito em razão da passagem “todas de bundinha de fora”), a intérprete resolve o embate abalizada pela profissão: “A mídia atreveu-se a julgar por um critério moral, mas a arte  avista discussões estéticas, não queremos ser moralistas”.

AXÉ
“O mundo ideal e uma alma pura” pretendidas por parte dos que caminham nesse  terreno “a passos de formiga e sem vontade” (diria Lulu Santos), travam certas noções de evolução comportamental. Marina afiança: “Música tem a ver com as nossas frequências, vivências. Essas pessoas, a Daniela Mercury, Gaby Amarantos, traduzem o país que elas conhecem, que pode não ser perfeito, mas é o que existe, e de uma maneira muito bonita e simples”.

Ivete Sangalo detém a admiração da entrevistada. “Paro para assisti-la quando aparece na televisão, ela é uma força que me aproxima dum universo do qual não faço parte, distante, e, dessa maneira, consigo me conectar um pouco”. Da lavra do axé, Marina também registrou “Beija-Flor”, êxito do grupo Timbalada, de Xexéo.

BOEMIA
Tímida e sensual, alternando altos e baixos na carreira como de seu temperamento escorregadio e em laivos, Marina recebia os olhares de Lobão e Júlio Barroso, amigos e compositores que juntos, apaixonados pela mesma presa, dedicaram-lhe “Noite e dia”.

“Não sabia que a música era para mim, mas sempre via os dois rindo muito nas festas, acho que eram dois espadas, no sentido de serem competidores e disputarem as mesmas mulheres. Não devem ter dito nada para não me assustar”, declara aos risos.

Cazuza, outro ícone da geração de 1980, poeta exagerado e “boêmio”, teve gravadas por Marina as músicas “Preciso dizer que te amo”, na ocasião inédita e “Carente Profissional”.

“Nunca gostei de dormir com o dia nascendo, e como ele era ‘noite adentro’, isso acabava sendo um limitante para nossos encontros, que quando aconteciam, por termos muitos amigos em comum, era pura farra, uma celebração!”, define.

SOFISTICADA
Saudáveis debates sobre ‘ser rock ou não’ foram travados com Renato Russo, que telefonava para Marina frequentemente, e era “sempre muito formal, fechado, e educadíssimo, aquela pessoa que você teme incomodar, mas como ele ligava, ficava à vontade”.

Aos poucos, a relação tornou-se menos tensa e mais divertida. “Quando ele se abria, e gostava do outro, demonstrava uma doçura e um carinho imensos, Renato tinha uma inteligência acima da média”.

A discussão proposta pelo amigo levou Marina a intensas reflexões, e embora tenha chegado à conclusão de “ter um espírito rock, em função da liberdade, ir contra as convenções e estar impregnada desse sentimento”, advertia possuir uma musicalidade “mais sofisticada no sentido de ser sinuosa, e fazer intersecções com Tom Jobim, música clássica, samba-canção”.

No entanto, do outro lado da linha, Renato não se convencia. “Não adiantava! Ele tinha uma sensibilidade incomum, com certeza via alguma coisa que eu não era capaz de perceber”.

ORIGINALIDADE
Independente em relação ao estilo e declaradamente apaixonada pelo suingue presenciado em Seu Jorge, “fico louca com isso!”, Marina deixou-se cair indolentemente nos braços tropicais e revolucionários de Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Gal Costa.

Todos dedicaram-lhe músicas ou gravaram sucessos de sua autoria. Segundo Lobão, a laureada com “Nosso estranho amor”, de Caetano, teria sido “adotada pelo movimento”.

“Para mim foi muito importante, pois de certa maneira recebi aval e prestígio”. As “pontes”, nas próprias palavras, estabelecedoras da união, teriam sido “o reconhecimento de uma originalidade, só posso entender assim, por ambos os lados”, orgulha-se.

OCULTA
Marina fecha o livro, “Maneira de Ser”, nome da primeira canção composta pela autora de “À Francesa”, com uma ode à família, voltando-se para a receita de whisky ensinada pelo pai e os signos da mãe e dos irmãos. “Junto com os amigos formam os alicerces, as bases sobre as quais esparramamos a vida”.

Na casa de Marina, a loucura do patriarca por Beethoven e música erudita fazia ecoar pelos corredores as composições curativas. Passeando pelas ruas da capital carioca, conheceu William Magalhães, filho do pianista da banda “Black Rio”, Oberdan, e adentrou ao silêncio de Debussy, a revoada de Villa-Lobos, o hino ao martírio de Chopin.

“Essas coisas vão nos transformando em que somos, o resto é por nossa conta e risco”, aponta, com o lápis detrás da orelha atenta, e treme. Marina tem a estranha mania de aproximar-se e manter-se oculta.

DISCOGRAFIA:
1- Simples Como Fogo (1979)
2- Olhos Felizes (1980)
3- Certos Acordes (1981)
4- Desta Vida, Desta Arte (1982)
5- Fullgás (1984)
6- Todas (1985)
7- Todas Ao Vivo (1986)
8- Virgem (1987)
9- Próxima Parada (1989)
10- Marina Lima (1991)
11- O Chamado (1993)
12- Abrigo (1995)
13- Registros À Meia Voz (1996)
14- Pierrot do Brasil (1998)
15- Síssi Na Sua (2000)
16- Setembro (2001)
17- Acústico MTV (2003)
18- Lá Nos Primórdios (2006)
19- Clímax (2011)

Marina Lima cantora

Raphael Vidigal

Publicado no jornal “Hoje em Dia” em 25/11/2012.

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8 Comentários

  • Marina, no começo de sua carreira deu um show no Teatro, Francisco Nunes, BH, por volta de 1977. Eu fui e assisti achei ela o maxímo!!

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  • Que bom, Raphael. Como sou fã de Marina, desde seu primeiro LP Simples Como Fogo. Sabia cantar tudo que ela produzia em seus primeiros anos de carreira. Uma mulher bonita, inteligente e que tem um trabalho único, maduro e estiloso no universo pop da mpb. Continuo amando essa mulher. Valeu demais!

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  • Aí vc mandou muito bem, Vidigal! Gosto bastante das músicas e do ritmo da Marina Lima. Ficou só faltando a canção “Criança” na sua entrevista, justamente a que mais gosto hehehe

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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