Dominguinhos, o relâmpago de Garanhuns

*por Raphael Vidigal

“A pressão de seus dedos parecia aumentar na flor o que ela de mais brilhante continha; realçá-lo; torná-lo mais fresco, franzido, imaculado.” Virginia Woolf

O primeiro dia de trabalho. Plural e diminutivo. Nome de batismo, a preceder o companheiro de Maria – José – mas que passara despercebido. Preferira, até aquele momento, o apelido. Até que houve o encontro. Não descansara no sétimo, nem no seguinte, ou nos de antigamente, desde miúdo acostumado a encarar o batente, o sol quente, chapéu coco circulando à espera das mãos, abertas e suadas, da caridosa gente.

Nas feiras de Garanhuns, Caruaru, interiores de Pernambuco, cidade natal e os municípios ao redor. Conterrâneo ilustre o viu pequeno, jamais teria crescido, talvez por isso agarrara-se ao modo como o conheciam. Mas Luiz Gonzaga logo o convenceu a abandonar o Neném para atender a partir dali e todo o sempre: Dominguinhos, herdeiro artístico, sanfona nos dedos, coração e astúcia de forrozeiro nato, atrevido, incansável.

À porta do sertão, declinou o convite. A brasa persistia, formigava, zumbia e volteava, ziguezagueava insistente qual abelha no mel, iridescente como vaga-lume no pântano do breu, irritante quanto mosca escapando de tapa, afinal escalou um pau de arara, acompanhado dos seus e dos nossos, em vistas ao sonho dourado, o mar estendido à frente, areia brilhava igual ferida de chifre de bode, e das brabas, Rio de Janeiro, apresentava-se.

Mais de três noites, dias inteiros em boates, nas casas de espetáculos, palcos cada vez maiores, e o nanico garoto um permanente relâmpago: forte, luzidio, sonoro, encantador. Domingos Ambrósio, mestre do Rei do Baião, inspirador da alcunha a espalhar-se Brasil afora certamente orgulhava-se dos filhos pródigos a entoar a cor do povaréu, as cantigas da gente humilde, arruaça nobre dos excluídos, festança de manhã à noite, sem hora pra acabar.

Xote, fole, xaxado, chiado, um xodó, dois bocados, valsa, chorinho, bossa nova. A Elba Ramalho, Gilberto Gil, Fagner, Anastácia, Gal Costa, Maria Bethânia, Chico Buarque. Abriu-se o mundo, imenso, farto. Mas não se pode o espinho lúgubre dum cacto. A aparência engana, ouça. Chegue de manso, calmo, talhe com bordejo os passos. Dele dá-lhe a água. Mineral, árdua. O caule espesso, grosso, armazena a chuva, arisca, e rara.

Os olhos puxados, dum incenso oriental. A boca repete o grave do peito, um batido surdo, e delicado. O acanhado de volta pro teu aconchego. O teclado às laterais da caixa de aço, a madeira, a caatinga, o cangaço. A sanfona de Dominguinhos, e os coitados, desvalidos, agradecem: em coro, de pé, às palmas. Obrigado! Por favor, barulho. Liberte a estrela do nordeste, esqueça o medo, solidão, peste. Eu só quero do amor, este trinido de acordeom. Fértil.

Sucessos: – Eu Só Quero Um Xodó (1974) – com Anastácia
– Lamento Sertanejo (1979) – com Gilberto Gil
– De Volta Pro Aconchego (1985) – com Nando Cordel
– Isso Aqui Tá Bom Demais (1985) – com Chico Buarque
– Gostoso Demais (1986) – com Nando Cordel

“Eu Só Quero Um Xodó” (forró, 1973) – Dominguinhos e Anastácia
“O Dominguinhos tocava o tempo todo. A gente viajava muito por esses sertões afora, ele dirigindo e eu do lado com gravador, caneta e caderno para, sempre que pintasse alguma coisa, eu estar apta a fazer a letra”, revela Anastácia. Após a separação, os dois ficaram 20 anos sem se falar. Juntos, Dominguinhos e Anastácia deram à luz mais de 250 composições. “Dominguinhos é um dos maiores artistas que o Brasil já conheceu, e tive o privilégio de ser companheira dele. Parcerias são feitas para isso, mesmo que um não esteja, o outro dá continuidade”, assevera. Ao lado da então esposa, Anastácia, o músico Dominguinhos compôs um dos maiores sucessos de toda sua carreira: o forró “Eu Só Quero Um Xodó”. Lançado em 1973, recebeu diversas regravações e se tornou um hino da carência romântica, da saudade, do aconchego gostoso junto à pessoa amada.

“De Volta pro Aconchego” (baião, 1985) – Dominguinhos e Nando Cordel
Dominguinhos morria de medo de viajar de avião. Por isso, passava muito tempo na estrada, em viagens terrestres, para cumprir uma agenda de shows de norte a sul do Brasil. A experiência o levou a criar a melodia “De Volta pro Aconchego”, para a qual pediu uma letra de Nando Cordel, explicando que ela deveria tratar sobre a saudade que sentia da mulher, a cantora Guadalupe, e da filha. Assim que ficou pronta, Dominguinhos mostrou a música para Elba Ramalho, que preparava novo disco, mas a cantora achou a canção muito acelerada. Mais lenta, ela foi lançada por Elba em 1985, com o violão de Dori Caymmi e a sanfona de Dominguinhos, e entrou pra trilha de “Roque Santeiro”.

“Isso Aqui Tá Bom Demais” (forró, 1985) – Dominguinhos e Nando Cordel
Se a história da música popular brasileira possui uma linhagem, nela não pode faltar o nome de Chico Buarque de Hollanda. Filho do historiador Sérgio Buarque – e irmão das também cantoras Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Hollanda –, o garoto prodígio da canção nacional, como era de se esperar, começou cedo. Enfileirou sucessos desde o princípio da carreira, nos anos 1960, auge da bossa nova, passando por vários ritmos, gêneros e inclusive movimentos musicais, alinhavando parcerias com nomes como o poeta Vinicius de Moraes, o maestro Tom Jobim, o dramaturgo Ruy Guerra e o tropicalista Gilberto Gil, além de outros compositores de peso, tais como Milton Nascimento, Francis Hime e Edu Lobo. Em 1985, Chico cantou com Dominguinhos o forró “Isso Aqui Tá Bom Demais”, parceria do sanfoneiro com Nando Cordel.

“Gostoso Demais” (xote, 1986) – Dominguinhos e Nando Cordel
A parceria entre Dominguinhos e Nando Cordel rendeu mais uma canção de sucesso em 1986, quando Maria Bethânia lançou “Gostoso Demais”, no LP “Dezembros”, que vendeu mais de 300 mil cópias. A música volta a apostar no tema da saudade, com uma melodia dolente. “Tô com saudade de tu, meu desejo/ Tô com saudade do beijo e do mel/ Do teu olhar carinhoso/ Do teu abraço gostoso/ De passear no teu céu”. A música mereceu uma regravação de Elba ao lado de Dominguinhos, no álbum “Baião de Dois”, lançado em 2005. A dupla também interpreta junto “Eu Só Quero um Xodó”, “Tenho Sede” e mais.

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3 Comentários

  • oi tudo bem? gostei da sua matéria sobre o Dominguinhos…principalmente desta parte: “Os olhos puxados, dum incenso oriental. A boca repete o grave do peito, um batido surdo, e delicado. O acanhado de volta pro teu aconchego. “… vc escreve com o coração Raphael,isso é lhe é muito peculiar…grande abraço.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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