“Meu calor não te assusta. Nem minha luz/Sou uma camélia imensa
Que oscila e jorra e brilha, gozo a gozo./Acho que estou chegando,
Acho que posso levantar – /Contas de metal ardente voam, e eu, amor, eu
Sou uma virgem pura/De acetileno/Cercada de rosas,/De beijos, de querubins,
Ou do que sejam essas coisas róseas./Não você, nem ele,/Não ele, nem ele
(Eu me dissolvo toda, anágua de puta velha) – Ao Paraíso.” Sylvia Plath
A estreia de Gabriela Luque na direção revela uma artista inquieta, moderna, ousada, características que aparecem no espetáculo “Rua das Camélias”, com dramaturgia de Daniel Toledo e Gabriela Figueiredo. Com a intenção de explorar e apresentar o universo da prostituição numa das ruas mais emblemáticas de Belo Horizonte, a Guaicurus, a peça acerta logo de cara ao decidir instalar-se num dos hotéis desativados da região, o que permite à experiência teatral aproximar-se o quanto é possível da realidade. Uma das descrições mais sensíveis apresentadas sobre o tema, não por acaso, dá conta desse truque, como dito no encarte e repetido na montagem: “na distância infinita que existe entre dois corpos grudados”. Aí, o teatro não se assume como teatro, como prezava Brecht, mas nem por isso deixa de emitir sua força, muito pelo contrário. Enredados fisicamente os espectadores, que são também chamados por essa mesma força a atuar, podem compreender as nuances do discurso que se enlaça tanto na objetividade quanto por um lirismo incomum. A força que provoca incômodo e deslocamento ao final reverte-se em comunhão.
Francamente feminista, politizado, contemporâneo, sem recusar referências históricas como na alusão à Hilda Furacão, o espetáculo reserva sua carga experimental quase que toda para seu aspecto estético e de forma, possibilitando que o conteúdo seja assimilado de imediato, o que não resulta em didatismo e muito menos falta de complexidade. É que o assunto é urgente e toda a aura de escândalo que lhe circunda dispensa acrobacias e firulas. Por escolher uma trajetória viva e pulsante que se equilibra sobre uma mínima estrutura dramatúrgica, a experiência exige de seus atores uma entrega ao inesperado e um absoluto domínio das personalidades criadas, no que se obtém um quadro harmônico de atuações, em que o improviso obedece quase que instantaneamente ao espectro emocional em pequenas doses referendado por gestos e confissões. Impressiona a maneira concisa com que se conseguiu definir sem o martírio da limitação um pouco da vida das personagens, tornando-as de carne, osso e, num ambiente de fantasia, absolutamente críveis. Mais uma vez é a imagem da “distância infinita entre corpos grudados”.
O time de atores é formado por Ariádina Paulino, Edsel Duarte, Flávia Pacheco, Gabriel Zocrato, Istéfani Pontes, Marina Abelha e Regina Ganz. Os figurinos de Flávia Pacheco, a cenografia de Sara Maranhão, que também é responsável pela iluminação ao lado da atriz Istéfani Pontes, a direção musical de Deh Mussulini e Thiago Braz, enfim, são aspectos técnicos que convergem ativamente para que a história seja contada, a fábula ocorra e uma mudança significativa aconteça tanto sobre aqueles que foram convidados a participar quanto aos que propuseram a empreitada; pois o que se busca, sobretudo, é movimento de aproximação, identificação, respeito e irmanação. Ainda que ali estejam, em geral, pessoas dispostas a já concordarem com o discurso, a força da experiência formal é capaz de incutir mais dúvidas sobre as certezas reinantes, e, ao invés de repisar o repisado, por meio deste gesto teatral de imersão, propiciar que sensação, sentimento e reflexão se acoplem, como “dois corpos grudados”. Pois a mortal função da arte é propor a liberdade, ou, ao menos, alguma libertação. Eis a fagulha acesa pela “Cia. Vórtica de Teatro”.
Serviço
“Rua das Camélias”. De Gabriela Luque.
Com: Companhia Vórtica de Teatro.
Onde: Hotel Imperial Palace (Rua Guaicurus, 436, Centro).
Data: 4 de novembro a 27 de novembro. Sexta a domingo às 20h.
Ingressos: R$30 (inteira); R$15 (meia).
Raphael Vidigal
Fotos: Fernando Badharó/Divulgação.