“Mas então que é o tempo? É a brisa fresca e preguiçosa de outros anos, ou este tufão impetuoso que parece apostar com a eletricidade?” Machado de Assis
Não é por acaso que um espetáculo tão moderno como “Pai Contra Mãe”, da Cia. FUSION de Danças Urbanas, tenha suas raízes fincadas em um conto ambientado no século XIX – por sinal cujo autor, Machado de Assis, negro nascido no Morro do Livramento, pouco frequentou escolas públicas e jamais teve acesso à universidade – já nessa aparente contradição a montagem almeja dizer algo. Aliás, nada é por acaso nesse espetáculo em que cada movimento nunca se descola do texto, que opta por uma linguagem simbólica e não descritiva, artifício que amplia ainda mais o impacto descarregado sobre a plateia. Outra escolha importante é a de não ignorar a presença da plateia, e, novamente, sem referir-se diretamente a ela amarrar um canal de comunicação que permite aos dançarinos encará-la como quem encara a realidade. Aquela realidade que, exposta aos olhos em suas feridas e profundidades, alcança com brilho e vigor as pontas que unem o passado escravocrata aos dias atuais.
Ao elaborar a narrativa sobre tensões os corpos se deslocam em permanente estado de choque ou com esse risco à espreita, já que a luta pela sobrevivência se impõe e o condicionamento à mercadoria parece imutável. No entanto, é essa mesma presença da dança, entendida tanto como argumento quanto em sua essência estética, quem causa danos a esse aparente escudo de aço, essa barreira que, através de giros e pulos, se vê transposta. A subjetividade frontal do cenário, a aspereza do figurino, a contundência da trilha e a pontualidade da iluminação garantem à peça uma textura impressionante que, combinada à dança, em si, ajudam a atingir aos sentidos do corpo e a irromper contra as sombras letárgicas. Não apenas para ser visto ou escutado, “Pai Contra Mãe” arroja na direção de todo o corpo, a fim de que, a partir desta experiência altamente sensorial, a consciência seja afetada. Não é exaltação, pois as dançarinas e os dançarinos são, aqui, a própria cultura negra: resistente, exacerbada, que revigora todo o poder poético da nossa arte.
Ficha técnica
Idealização de Isadora Rodrigues e Leandro Belilo.
Inspirado em conto de Machado de Assis.
Direção de Leandro Belilo com assistência de Wallison Culu.
Coreografia criada colaborativamente.
Com Aline Mathias, Augusto Guerra, Isabela Isagirl, Jonatas Pitucho, Leandro Belilo, Silvia Kamylla e Wallison Culu.
Figurino: Helaine Freitas/Cenário: Leandro Belilo e Mauricio Leonard/Trilha Sonora: Leandro Belilo (seleção musical) e Matheus Rodrigues (criação original e apoio técnico)/Iluminação: Leandro Belilo e Edimar Pinto/Orientação de pesquisa: Reinaldo Martiniano Marques e Alexandre de Sena/Preparação corporal: Italo Freitas e Silvia Kamylla/Provocações: Gil Amâncio/Produção: Isadora Rodrigues e Victor Magalhães com assistência de Amanda Pontes.
*Espetáculo presente à programação do Verão Arte Contemporânea 2017
Raphael Vidigal
Fotos: Pablo Bernardo.