Autor de quase 500 capas da MPB, Elifas Andreato reflete sobre o tempo

*por Raphael Vidigal

“Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência.” Michel Seuphor

Ao mirar as próprias mãos, Elifas Andreato, 76, teve uma epifania digna de James Joyce (1882-1941) e percebeu “que muitos anos haviam passado”. “O artista gráfico tem duas maneiras de ver o envelhecimento: ele trabalha sobre papéis e mesas brancas, e os cabelos negros sempre caem ali, os meus caíam muito. Depois, são as mãos que revelam o tempo nas manchas que se acumulam”, conta Andreato.

Desenhando um retrato de Martinho da Vila com lápis, o ilustrador paranaense notou que a imagem refletia, também, a sua própria condição. Diante dessa experiência ele retirou, com seu talento, um “aprendizado de vida e um trabalho pessoal e bonito”, declara. A referida capa do LP “Martinho da Vida” (1990) pertence a uma obra que se confunde com a história da música popular brasileira.

Desde 1970 nesse ofício, Andreato acumula, atualmente, cerca de 500 ilustrações para capas de discos, que já ganharam uma exposição no Museu Afro Brasil, em São Paulo. O fio dessa meada remonta ao ano de 1971, quando Andreato foi contratado pela editora Abril Cultural para “um projeto gráfico bastante avançado para a época”. A missão era acompanhar os repórteres nas entrevistas com músicos, e, a partir daí, “coletar material” para sua arte.

Com o convívio, Andreato se tornou amigo dos jovens compositores que surgiam. Em 1972, retratou Paulinho da Viola para o álbum “A Dança da Solidão” e, um ano depois, criou a ilustração de “Nervos de Aço”, que “mudou o conceito de capa da música brasileira”, atesta Andreato. “O (César) Vilela tinha feito um trabalho lindo para o selo Elenco, do Aloysio de Oliveira, mas era para uma música mais sofisticada. Ocupei um espaço que estava vago na música popular”, observa Andreato.

Na década de 1990, Paulinho da Viola encomendou uma letra para Ferreira Gullar, que o presenteou com “Solução de Vida”, cujo expressivo subtítulo é “Molejo Dialético”. A música foi lançada por Paulinho, autor da melodia, em 1996, no álbum “BEBADOSAMBA”. Posteriormente, recebeu uma versão ao vivo em “BEBADACHAMA”, de 1997.

“Acreditei na paixão/ E a paixão me mostrou/ Que eu não tinha razão/ Acreditei na razão/ E a razão se mostrou/ Uma grande ilusão/ Acreditei no destino/ E deixei-me levar/ E no fim/ Tudo é sonho perdido/ Só desatino, dores demais”, dizem os versos do samba. Na capa do álbum, os traços inconfundíveis de um poeta da arte visual: Elifas Andreato, que acabou premiado por mais esse desenho histórico, assim como Paulinho pelo álbum.

O ilustrador, aliás, foi responsável por um desenho que acabou descartado pela gravadora Odeon, em 1980, quando o disco “Adoniran Barbosa: 70 Anos” era levado adiante graças aos esforços do jornalista e produtor Fernando Faro. Com a desaprovação dos diretores, foi encomendada uma nova ilustração. Posteriormente, Adoniran confessou ter se identificado com o primeiro retrato, mas já era tarde. “Ficaram com medo de ele não gostar e pediram uma imagem mais tradicional do Adoniran. Depois de ver o desenho original, o Adoniran falou para Andreato que aquele palhaço triste era ele, e não o com cara de alemão que acabou saindo na capa”, conta o cineasta Pedro Serrano.

“A obra de Adoniran é trágica. Com certo humor, ele conseguiu fazer a gente rir da desgraça que é a condição dessa vida”, arremata Andreato, com a mesma precisão poética de seu traço.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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