Alcione defende a democracia após ataques do presidente da Fundação Palmares

*por Raphael Vidigal

“O quintal estava em trevas, mas havia luzes de vida nas janelas” Gabriel García Márquez

Liderada por Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, a Revolução de 30, que levaria ao poder Getúlio Vargas (1882-1954), acabou por popularizar uma expressão que exaltava a valentia do menor daqueles Estados: “Paraíba, mulher macho, sim senhor”. Duas décadas depois, Luiz Gonzaga (1912-1989), o Rei do Baião, e Humberto Teixeira (1915-1979), a recuperariam para criar um dos maiores sucessos da dupla, incluindo uma palavra para encaixar os versos na métrica do baião: “Paraíba, masculina, mulher macho, sim senhor!”. Lançada por Emilinha Borba (1923-2005), em 1950, e regravada por Elba Ramalho, “Paraíba” tornou-se emblema da força das mulheres locais.

Alcione, 72, é um exemplo vivo dessa postura aguerrida. “Nunca fui de abaixar a cabeça para ninguém, acho que já nasci ‘empoderada’, como se diz por aí. Em nossa casa, aprendemos a não ser subservientes. Meus pais sempre me orientaram a não depender de homem nenhum”, declara. Em julho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro usou a mesma expressão no sentido oposto. Em áudio vazado, ele invocou a Paraíba para depreciar seus cidadãos e reiterar preconceitos. “Daqueles governadores ‘de paraíba’, o pior é o do Maranhão. Não tem que ter nada com esse cara”, confidenciou ao Ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, em referência ao governador do Maranhão, Flávio Dino, filiado ao PC do B (Partido Comunista do Brasil).

Raízes. A declaração causou revolta. Nas redes sociais, Alcione, nascida na capital São Luís, saiu em defesa de sua terra. “Respeite o Maranhão. O senhor tem medo de facada, tem medo de tiro, mas o senhor precisa ter medo do pensamento. O pensamento é uma força. Pense em mais de 30 milhões de nordestinos pensando contra o senhor? Comece a nos respeitar. Respeite o povo brasileiro”, apelou. O episódio rendeu uma polêmica inusitada. Envolvida em uma bandeira do Maranhão, a cantora foi acusada, por detratores incautos, de estar vestida com a de Cuba, dada a semelhança entre ambas.

Defensora incansável de suas origens, a Marrom encerra “Tijolo por Tijolo”, álbum que acaba de colocar na praça, com “Lençóis” (Salgado Maranhão e Zé Américo), homenagem a seu Estado natal. “Tenho sempre uma ou mais canções em meus discos dedicadas às minhas raízes, das quais me orgulho muito. Gosto dos nossos ritmos e dos sons produzidos por lá. Nossa riqueza cultural é imensa, diversificada. O Maranhão sempre estará comigo, e não apenas nas músicas que canto. Lá em casa tem até uma placa, entre muitas outras coisas que remetem à minha terra, que diz: ‘Embaixada do Maranhão’. É para todo mundo saber onde está pisando”, avisa. Essa caminhada de 45 anos, iniciada no mercado fonográfico em 1975, com “A Voz do Samba”, é coroada com o primeiro trabalho de inéditas desde “Eterna Alegria” (2013), depois de uma ansiosa espera dos fãs.

Roteiro. Para selecionar o repertório do novo disco, a intérprete se guiou “pela intuição e a emoção, não por nomes de compositores”. “Basta me arrepiar. Assim, com certeza, também irá emocionar o meu público”, garante ela, que define o lançamento como “de cortar os pulsos”, em alusão ao caráter passional que sempre pautou sua personalidade artística. “Tem sambas lindos, de várias vertentes, e muitas canções românticas. Meu público adora e eu também!”. Entregando o que se espera dela, Alcione pisa com autoridade no terreno do samba e dos boleros apaixonados. Bambas de respeito, como Serginho Meriti, Arlindo Cruz, Roque Ferreira, Edil Pacheco, Toninho Geraes, Telma Tavares, Altay Veloso e Jorge Vercillo, dentre outros, compuseram 14 faixas especialmente para a anfitriã.

“São todos craques”, elogia. A faixa-título, de Meriti e Claudemir, reflete a maneira com que Alcione conduziu a carreira: “Tijolo por Tijolo”. “Não optei pelo sucesso fácil, quis ter uma trajetória. Por isso, acredito, estou aqui até hoje”, afirma. Com a morte de Beth Carvalho (1946-2019), no ano passado, a entrevistada perdeu uma antiga companheira de estrada, que a auxiliava a hastear a flâmula do samba. “Beth era uma grande artista, daquelas que entrarão para a história deste país. Ela tinha ‘feeling’ (intuição) para descobrir talentos, selecionar repertórios, e foi responsável pelo lançamento de tanta gente boa que ainda está por aí, além de redescobrir baluartes, como Cartola (1908-1980) e Nelson Cavaquinho (1911-1986)”, recorda.

Identidade. Desde que alcançou sucesso nacional, em 1976, com “Não Deixe o Samba Morrer”, da dupla Edson Conceição e Aloísio, Alcione jamais abandonou o gênero mais popular do Brasil. “O samba sempre arranja um jeitinho de continuar vivo e atual. É como um passaporte, a nossa principal carteira de identidade, assim como o futebol”, compara. Flamenguista e torcedora devota da Seleção Brasileira, ela presta reverência ao Rei do Futebol e Atleta do Século, nascido no interior das Minas Gerais, em “O Homem dos Três Corações”, de Altay Veloso e Paulo César Feital, que combina versos com a agilidade de uma troca de passes: “Um drible da vaca na dor da ilusão, no revés/ Os deuses ao verem Arantes improvisar/ Assim como fazem artistas de jazz/ E rompem as regras que nem Holiday no piano-bar/ Perguntaram quem é esse homem de três corações a dançar?”.

“Pelé é um dos nossos maiores orgulhos, o brasileiro mais conhecido, até hoje, no planeta. E um amigo querido”, exalta. Em outubro, o eterno camisa 10 do Santos completa 80 anos. Outro tributo do álbum é para a cidade que deu ao mundo Maria Bethânia e Caetano Veloso. Em “Santo Amaro É Uma Flor”, de Edil Pacheco e Walmir Lima, ela comanda a festa ao ritmo de palmas: “Vou levar minha viola/ Vou fazer samba de roda/ Pra ver meu povo sambar”. As dores e os prazeres das relações conjugais dão o tom em “Fascínio” (Paulinho Rezende e Toninho Geraes), “Alto Conceito” (Fred Camacho e Leandro Fab), “Teu Calor” (Júlio Alves, Ramires e Carlos Júnior) e na sofrida “Não Dá Mais” (Altay Veloso), que vaticina: “Estou assim como quem abandona o cigarro/ Ficando livre aos poucos do pigarro/ Retirando os cinzeiros da mesa”, libertando a mulher de um romance fadado ao fracasso.

Resistência. “Hoje, a maioria das mulheres reconhece seus direitos e sabe que o lugar delas é onde quiserem. Infelizmente, alguns homens ainda pensam que são donos de nossos corpos e nossas mentes. Por isso, há tanta barbaridade, violência e feminicídio”, denuncia. Apoiadora e amiga da ex-presidente Dilma Rousseff, para quem cantou na posse de sua reeleição, em 2014, Alcione não ficou calada diante dos disparates repetidos por Sergio Camargo, atual presidente da Fundação Palmares, criada originalmente, em 1988, em prol do movimento negro. Camargo chamou Martinho da Vila de “vagabundo que deveria ser mandado para o Congo”, definiu o movimento negro como “escória maldita” e ofendeu a memória de Zumbi dos Palmares (1655-1695) com palavrões do calão de “filho da puta”.

Em meio à onda de protestos antirracistas que eclodiram no mundo em decorrência do assassinato de George Floyd, um americano negro, por um policial branco que o asfixiou em Minneapolis, nos Estados Unidos, Alcione reagiu. Durante uma live da cantora Teresa Cristina, a Marrom não se segurou e disparou: “Vi aquela matéria do ‘zé ninguém’ lá da Fundação Palmares. Ainda dou na cara dele para parar de ser um sem-noção. A gente vê tanto sofrimento. Você vê os negros americanos naquela batalha. A gente vê as coisas que acontecem no Brasil, com bala perdida e tudo. Então, a gente vê uma pessoa da nossa cor falando uma besteira daquelas, tenho vontade de arrancar da televisão e encher de porrada para virar gente”.

Polêmica. O desabafo recebeu uma resposta imediata de Camargo, dizendo que Alcione era “barraqueira” e sua música “insuportável”. Defendida pela classe artística, a intérprete preferiu não rebater. Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Marisa Monte, Mart’nália, Emicida, Paulinho da Viola, Camila Pitanga, Seu Jorge, Pretinho da Serrinha e Bruno Gagliasso divulgaram vídeos em favor da sambista. Assim como Chico Buarque, que disse: “Minha querida Alcione, quero lhe mandar meu carinho e minha imensa admiração pela lição nesse sujeito que usurpou a Fundação Palmares, esse sujeito que é ruim da cabeça e doente do pé. Um beijo, Marrom. Saudade!”.

Pelo Twitter, Camargo voltou a alfinetar Alcione, insinuando que ela usava o apoio dos colegas para se vitimizar. Mas só obteve o silêncio como resposta. Após todas essas pendengas, a maranhense se vê impingida a insistir no óbvio: “Democracia é fundamental!”, exclama. No olho do furacão de uma pandemia que já matou quase 40 mil brasileiros, a população se viu estimulada a tomar as ruas durante dois domingos consecutivos, a fim de proteger a democracia, em contraposição à participação do presidente da República em atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.

Virtual. O carinho das redes também motivou Alcione. Inicialmente avessa à ideia, ela entrou na onda das lives a pedido dos fãs, principalmente pela possibilidade “de ajudar muita gente que precisa de apoio nesse momento com ações solidárias”, diz, e foi assim que a cantora lançou o seu novo álbum. Porém, ela faz questão de deixar claro que o formato virtual não substitui a presença física. “Sinto muita falta dos palcos, do calor do público, que artista não gosta? Mas tenho ficado no meu canto, cumprindo a quarentena direitinho. Mesmo durante as lives, seguimos as orientações e os protocolos da OMS (Organização Mundial da Saúde)”, destaca.

A maranhense, que foi professora primária, segue acreditando que “a música é fundamental para a formação das crianças e adolescentes, e a cultura é primordial para uma nação”. O futuro reserva o documentário “Eu Sou a Marrom”, de Angela Zoé, e um musical dirigido por Miguel Falabella e Jô Santana, ambos sobre sua existência. Hoje uma senhora septuagenária, ela mantém a obstinação de quem está só começando e tem o mundo todo pela frente para conquistar e transformar. “A mulher Alcione continua a mesma, com os mesmos princípios e o mesmo caráter. É claro que, com o passar do tempo, a gente aprende a ser mais paciente e menos afoita”, arremata.

Fotos: Marcos Hermes/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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