“Não era sem algum mal-estar que eu via essas cartas arderem. Elas avivavam um segundo o fogo e, tudo somado, eu tinha medo de ver tão claro.” Raymond Radiguet
Quando Camille Claudel escreveu sua última carta de amor a Rodin os efeitos da loucura descansavam. Aquele homem que lhe roubara a paz e pusera seus nervos em frangalhos não era mais capaz de tocá-la. Não era capaz pela distância que guardavam a perfídia solidão das grades do mundo livre e civilizado. Não era capaz por esse motivo concreto. Não era capaz pelo caráter macilento que o desejo adquire com o tempo, como se derramasse sobre ele um ácido que fosse lhe derretendo as rijas camadas da tensão inerentes ao desejo sexual, e que resta, ao final de tudo, como o tédio de dias mortos. Era esse caráter existencial que mais a desestabilizava. A subjetividade cravada em suas costas como uma lança documental. Quando Camille Claudel escreveu sua última carta de amor a Rodin os efeitos da loucura descansavam.
“Mil vezes escolherei você”. Era o que dizia. Era o que ele dizia. Não se esquecera. E jamais se esqueceria. Mesmo quando a loucura a tomava de pé e a tombava como uma girafa faz com o leão que tenta devorá-la num coice, essa frase se repetia impoluta em sua mente. “Mil vezes escolherei você”. Agora os efeitos da loucura descansavam. Mas era mais perturbador, justamente mais perturbador, perceber, com a consciência impoluta, o quanto aquelas palavras eram impossíveis de serem cumpridas. “Pelo caráter macilento que o desejo adquire com o tempo”, repetia para si mesma. Agora os efeitos da loucura descansavam. Lembrou-se de certa feita, quando um pingo de água caindo-lhe no nariz a inspirou a esculpir uma forma que parecesse onda, lhe parecesse água e sua qualidade interminável, essa ideia juvenil e inocente, cheia de frescor e intensidade.
“A independência é ainda um traço do egoísmo”, pensou, imediatamente repelindo o próprio pensamento, constrangida que estava em abraçar a causa dos ditadores, a causa daqueles que querem controlar a vida dos outros impingindo em suas mentes a culpa católica, os pecados capitais, o medo do inferno, a vergonha. Vivera o inferno na terra, não podia ter medo de nada, não podia ter medo dos céus nem dos mares. Era uma escultura de ondas, capaz de controlá-las na palma da mão. Rodin era uma força da natureza, absolutamente indomável e independente dos afagos, das carícias e dos desejos mais ardentes que Camille pudesse lhe oferecer. Servia-se de todos eles, mas sem tornar-se um viciado, sem que a abstinência roubasse de si a calma, os nervos, os ares. Ao contrário, Camille encontrava-se absolutamente entregue àquele homem, que lhe era necessário e não dispensável, assim se sentia em relação a Rodin.
Começou a divagar, então, lentamente, e como uma tênue linha do saber, livre, formava-se na frente de seus olhos todos os membros, todos os poros, todas as características físicas e subjetivas de Rodin. Colocou-as numa carta que imaginava endereçar ao ídolo, como num pedestal, sob o qual ela se ajoelhava e oferecia a boca, os poros, os membros, para que aquele homem despejasse como onda sobre ela toda a opulência da carne e a imensidão do amor. Um amor que imaginava ocasional, mas não por acaso. Se não tivesse conhecido Rodin teria despejado os seus desejos e aflições sobre outro homem, outra imagem na qual reconheceria a imagem do ídolo, do protetor, do macho. “Ocaso das casualidades ou o caso das casualidades”. Assim intitulou sua carta. E a endereçou. Quando Camille Claudel escreveu sua última carta de amor a Rodin os efeitos da loucura latejavam.
Raphael Vidigal
Imagens: reprodução de carta de Camille Claudel a Rodin; e escultura de Rodin para Claudel, “Danaide”, respectivamente.