A alegria de viver

“quanto mais obtuso o olhar, mais extenso é o bem! Daí a perene alegria das crianças! Daí o humor sombrio e o pesar dos pensadores!” Nietzsche

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Naquele paraíso álacre de Matisse uma das ninfas da roda resolveu se virar de costas para atrair a atenção dos ninfos. Evidente que os olhos destes que eram vermelhos se tornaram ainda mais rubros, cheios de palor, tal como os corpos das admiradas. Num outro canto um casal se tornava azul pela revelação de um amor de nuvens, enquanto o ninfo que ordenhava bodes tocava uma canção amarela, fácil de ser percebida pelo seu vigor. É verdade que havia também uma verde capinação, contrastada à letargia rosa de corpos ao sol, bem como ao vermelho florido, trespassado por uma filigrana, daquela que se banhava.

Banhava-se de quê? Agora me perguntam. Ora, há uma filigrana, como não bastasse, o sol de Matisse é bastante generoso. Há ainda uma canção sendo tocada, roxa e azul, ou melhor, lilás, ou, antes, seguindo o retiro dos camaleões, e por fim uma cena do milagre do gozo, coberto por uma toalha levemente branca, cuja camada de azul se descoloriu em razão dos tremores a que foi obrigada sustentar. Naquele paraíso álacre de Matisse impera uma alegria de viver. As cores não sentem culpa, e abafam os seres humanos. Pois se estes tomassem conta das formas e pormenores, certamente questões de realidade seriam consideradas, o que inevitavelmente traria a morte e todas as desgraças a que estão imunes as obras de arte.

Houve, porém, um agravo. Embora a harmonia contemple a paisagem, e as cores não sintam culpa, elas não estão livres do ciúme. E tomaram céus, e tomaram árvores e tomaram corpos, flautas e bodes como quem se lambuzasse de sorvete com calda. Houve, pois, um derramamento de sangue das cores, mas em sua perspectiva o sangue tem a forma e massa da calda de chocolate de um sorvete, ou, antes, calda de morango para o vermelho, de maracujá para o amarelo, laranja para a laranja, e assim por diante. Diante deste cenário, a alegria de viver dos passantes, das ninfas e ninfos e bodes, ganhou em música, em movimento, e dramaticidade.

A roda permanece girando, e a ninfa rebola como quem imagina ser possuída por membros fortes, rijos, como a casca verde e dura das árvores. Os ninfos elevam-se em seus altares como quem maneja a espada cinza dos vingadores, e babam com uma baba amarela a espuma do desejo e dos espasmos. Quem ordenha bodes sente no calor o refresco de um sol áspero. As quem posam para este mesmo sol sentem nas peles de elástico os efeitos do tempo da cor azul, das nuvens formando chuvas. O banho da dama da filigrana de rosas escorre num vermelho ocioso. O homem a capinar sente a dor, cessa ao cansaço. O casal de lésbicas toca uma cor, o fio de um verde relâmpago. E a música da flauta segue intermitente o gozo do casal ao seu lado, trêmulo, nu.

Assim, a alegria de viver de Matisse recebe contornos, ganha contrastes, em seu paraíso álacre.

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Raphael Vidigal

Imagens: Pintura “A alegria de viver”, de Matisse; e foto do artista com um gato, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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