Crítica: Espetáculo “Nuvens de Barro” assimila poeta ao absurdo

“As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul –
Que nem uma criança que você olha de ave.” Manoel de Barros

Nuvens de Barro se inspira em textos de Manoel de Barros

É desafiador transpor uma obra rica imageticamente para outro campo de imagem. No caso: quando a imagem contida numa palavra passa a estar contida num corpo. Esse ambicioso projeto foi encarado, por exemplo, por dois cineastas, o austríaco Michael Haneke e o britânico Alfred Hitchcock, que adaptaram textos de Kafka para a tela grande. O espetáculo “Nuvens de Barro”, encenado pela Cia. de Dança Palácio das Artes, escolhe a obra de Manoel de Barros para a empreitada. Se fatores importantes da poesia do pantaneiro aparecem na montagem o cerne lhes escapa. Lá estão a liberdade, a brincadeira, a audácia e a proximidade, porém, aquele que pretendeu “monumentar as miudezas” transformava o absurdo em simplicidade, já a peça o compreende ao contrário. Com uma linguagem pura, infantil, quase arcaica, Barros eliminava excessos formais para que a exuberância resplandecesse ali, na palavra, na imagem. Ao expor os versos do poeta em sua condição literal, o espetáculo retira da obra o vigor e a contundência que residem, justamente, em sua alma figurada. Para Manoel, absurdo era o mundo prático, e não o avesso. Nos melhores momentos os gestos e elementos cênicos alcançam a singeleza.

Quando a dança se expressa em sua característica simbólica, sem pretender descrever objetos, pessoas ou animais que aparecem na obra, aí ela se aproxima desse universo lúdico e fantasioso, mas que, para além da beleza, acredita em seu sentido filosófico. A opção de abordagem acaba por condenar a consciência de Barros a um espaço meramente esdrúxulo e inatingível, utópico em todos os casos. O figurino se acopla a esta imagem, enquanto o cenário guarda ainda algo do primitivismo de Manoel, na acepção de regressar à origem, ao básico, em última instância, ao que realmente importa nessa caminhada da existência humana. A música, por outro lado, combina tanto pureza quanto experimentalismo, sem que este casamento lhe tire a unidade, ao contrário, ela reafirma – como fora a máxima de Manoel – a possibilidade de conciliar ao simples o incrível, retirando do segundo o barro. Por isso a escolha em vestir os rostos de duas personagens que remetem ao quadro de Magritte também turva o entendimento, já que o pintor afirmava a falsidade da arte, ao passo que Manoel de Barros acredita mais em sua poesia que no mundo das utilidades. Espantoso é o tamanho incomensurável da simplicidade, e do gasto.

Ficha técnica
Direção geral de Cristiano Reis.
Direção cênica de Fernando Martins e Joaquim Elias.
Direção coreográfica de Fernando Martins.
Com os criadores e intérpretes Andrea Faria, Ariane de Freitas, Christiano Castro, Cláudia Lobo, Fernando Cordeiro, Igor Pitangui, Léo Garcia, Lina Lapertosa, Mariângela Caramati/Alex Silva, Amanda Sant’ana, Beatriz Kuguimiya, Carlos Gomes, Gustavo Silvestre, Ivan Sodré, Lívia Espírito Santo, Lucas Medeiros, Naline Ferraz.
Assistentes de criação: Patrícia Werneck e Sônia Pedroso/Direção de arte: Rai Bento com a assistência de Renata Alice/Iluminação: Leonardo Pavanello/Figurino: Rai Bento e Renata Alice/Concepção e pesquisa de Trilha Sonora: Fernando Martins e Rodrigo Salvador/Trilha Sonora Original: Rodrigo Salvador/Assistente de Cenografia: Antônio Lima.

Cia de Dança Palácio das Artes apresenta Nuvens de Barro

Raphael Vidigal

Fotos: Beto Staino.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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