“Ando perdida nestes Sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tactear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!” Florbela Espanca
Arrancar pedaço? Arrancar pedaço. Todos querem arrancar pedaço. A mãe de João Cornélio na cama nova. Grilo entre frutas e doces. A senhora, um leve buldogue. O Gordo e o Magro. Tânia, a tabeliã. Das Neves e o manto furado. Maria, Marina e a cobra. Vanessa e o seu decote. Fernanda e Leonardo. Aline na beira do lago. Zaira uma massa gorda. Leva dinheiro, arranca estacas. Nada se prende, nada se afoga, nada é profundo. A flor no chão, atropelada, que convidou, serviu o chá. Não existe mais. A onça fanha, ou era flor? Ou era Ágata? Ou era Jade? Muda o nome, mudam os rostos, muda o enterro, e até o defunto, mas o cavalo ainda é um bode. Por entre casas, e cemitérios, e até cortinas, desejos feitos, e as meninas, tão comportadas, a virgindade, deixaram em casa, só para os pais, ainda são santas. Giram os peões. Giram os cachorros. Giram os ossos. Do velho padre: Homero bravo, batina roxa. E a berinjela, aos degradados: tosca, amarela. Uma cidade. E a tal cigarra? Mas as formigas a devoraram. Passa subterrânea, ninguém vai ver: o nosso estrago. Uma cigana previu o futuro. Hoje está morta. E tem certeza. De que a vida. É um grande sonho.
Embora importe isto não modifica nada. Foi a percepção a denotar o ar indiferente, circunstancial e tacanho. Passam os dias ásperos neste escritório inconsolável. Escamoteada, instável, mendiga uma última algazarra: a história. Os dedos doem. Testículos inchados prendendo a explosão da euforia latente, lactante o seio das grávidas. Por saber que o durar será de um segundo, e o sofrimento, e o cansaço, e a procura, e o destino, e a sombra nesse sol áspero, eternos. Por saber que o alívio existe não crer em redenção. Definho-me debaixo deste costumeiro sol ou voo em direção às chuvosas nuvens e negras? O sol me aborrece, queima as pupilas se muito me olhar diretamente, garante tranquila soneca após o almoço. As nuvens, enchentes de águas, podem me transportar para outro lugar, novo, esmero de obstáculos imaturos. O velho é a certeza de dias piores à espreita, sóis. O novo é a insegurança, caule à mesa, promessas de vida? Ou de morte, apenas.
Raphael Vidigal
Pinturas: Obras de William Turner.