“Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agonizante?” Murilo Rubião
O cemitério convida a entrar: “Bem-Vindo!”. Ignora o pedido e a educação recebida em casa de tia Laura. Foge pela culatra o tiro no pé descalço. Não é possível um cemitério convidar com tamanha pompa. De certo um trocadilho, engano, piada. Na mesa ou janela… Sim, existem janelas em cemitérios, observe a lápide… Na mesa ou janela, havia um cardápio… Onde se lia fraco: “Bem-Vindo!”. E o garçom, um pouco constrangido, responde: “Vá à panela e tire um pedaço do bolo, sem muito esforço, a melhor fatia para a tua fome”. Foi aí que atolamos o carro. Presos pelos cipós das correntes telúricas não é possível seguir viagem.
O bruto animal não se locomove diante do frígido congelamento, as patas carecas entregam-se à argila consistente. O convite é exato: o cardápio, a lápide. Que não entendo o óbvio, a matéria, o miserável, confuso! Os homens preguiçosos, espreguiçando-se como gambás de luxo, após horas de cachaça goela abaixo, não se agradam com a ideia de aventura no meio da peregrina tarde: indo embora, sol posto, vermelho rubro. Todos no mesmo combate, mesma direção, meus olhos: deixo o cemitério com a impressão de ser bem recebido pelos mortos.
Eles me convidaram, fui com minha alma penada, roupa na mesma linhagem, e meus desejos de morte. O bolo do prato encerrado em meu estômago, agora largo, prestes a explodir como um vulcão em erupção, e os calores do deserto do Saara. Os mesmos desertos, as coisas mesmas, se locomovendo, por si só, encontram-se. Salvaram o carro com a ajuda dos velhos. Os mais novos nem se mexeram. Três histórias ao meio para azedar o acinte: – Um pouco de tragédia – Um pouco de comédia – Um pouco de sufoco – Um copo de mistério – Um copo de fermento – Um copo de farinha – Nada que se compreenda cabe em Santa Maria.
Raphael Vidigal
Pinturas: Obras de Edvard Munch.