Cerimônia Fúnebre

“Da mesma forma, deve haver inúmeras realidades, não só esta que percebemos com nossos sentidos embotados, mas um amontoado de realidades se sobrepondo umas às outras. É medo e presunção acreditar em limites. Não existem limites, nem para os pensamentos, nem para os sentimentos. É a ansiedade que impõe limites.” Ingmar Bergman

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O acontecimento mais expressivo de nossas vidas é a morte. Engraçado – era com ironia e desencanto que utilizava a palavra; o velório com que sonhara durante a juventude, com todos e os mais variados amigos ao redor, uns malucos, drogados, pervertidos sexuais, mulheres lascivas e recatadas, algumas que apenas desejara, outras das quais provara o sabor da carne, e mais inúmeros tantos sérios como uma gravata, com a mesma morbidez nos olhos característica dos guaxinins, jamais aconteceria.

Sonhara com a cerimônia, aquela espécie de ritual macabro como uma apolínea consagração para uma existência dionisíaca, crente de que poderia aproveitar da vaidade que os choros e lágrimas vertidas em sua memória tornariam, de certa maneira, e nesse momento, digna, ignorando o seu quase absoluto ceticismo. Pois na hora da nossa morte o sonho vale mais à caveira que apodrece, filosofou em voz baixa, quase para si, disperso que estava do público, e somos coroados e reverenciados como uma perfeita Madonna, límpida e livre de pecados, tão puros e festejados qual na hora do nascimento, só que já passamos pela vida, agora nos tornamos conhecidos e as pessoas estabeleceram razões e motivos concretos para debruçar sobre nós suas emoções, angústias, desejos e expectativas, constatou ainda mais para dentro de suas entranhas, aquele resto de rancor mastigado que o reduzia a bolor.

Mas era agora um homem de 90 anos, por assim dizer, ancião, e todos esses intérpretes que adornariam a platéia estabeleceram-se neste lugar de centro antes de mim, que fiquei ao lado, à margem, mais um ponto borrado entre tantas lágrimas, suores e lenços. Compungia-se na espera de que o vento o levasse para junto deles, ou que a poeira o embolasse nestas memórias. Assustou-se ao perceber que as perdas não o sensibilizavam em específico, com suas identidades definidas, próprias, mas no anonimato que consagra a multidão. Eram necessárias para chorar por ele, não o contrário. Jamais imaginara um mártir velho, caquético, com problemas do corpo por toda parte, desde os locais mais escondidos até a mais óbvia precariedade que absorve tudo o que é finito. O tempo impõe uma cortina de plástico sobre nossos tecidos, mas é uma cortina ranhosa, incômoda, áspera, que à medida que se esgarça mais e mais anuncia a precisão e urgência do que está prestes a estourar, e nesse estouro, qual uma rajada de fogos de artifício, haverá uma celebração para a pele que desapareceu, o tecido que estourou, o manto velho e rasgado que já não nos incomoda ao olhar, pois mantém-se inerte e nessa imersão alcança finalmente certa dignidade. Porém, ah, porém, nada de celebração para os solitários. O corpo mais rançoso do mais ancião dos elefantes merece a última lágrima. Mas a multidão dispersou-se em seu anonimato, e mesmo os rostos de outrora já não dizem nada.

Não haveria, pois, a sua cerimônia fúnebre. Não haveria, por que talvez já estivesse morto? Não haveria por que inventara e fantasiara com fantoches de uma platéia que nunca existiu? A própria morte deles soava como desconsolo. Mas afinal quem eram? Da onde vieram, para onde? Putas, drogas, amantes, ex-namoradas embaralhavam-se num passado distante, irreconhecível e, sobretudo, inalcançável. Foi quando começou a andar como se tivesse menos de um ano. Menos de um centímetro. Menos de um segundo. E tinha…

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Raphael Vidigal

Imagens: Gravuras de Goya.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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