“mas o reino da fantasia, assim como o da realidade evidente, pertence às bruxas.” Reinaldo Arenas
Opulento, rústico, forte, grosseiro, mas afável. Adula o gesso da forma e não encontra meios para conter o ronco do motor. Faltam-lhe modos. De certo, faltam-lhe modos. Sem mover um músculo da face, herança e álibi dos escravos, Francisco desfia a mais interessante renda do céu de Santa Maria:
“– Numa noite silenciosa e larga, um menino saiu pelado pelas ruas da cidade gritando que tinha visto o diabo. As carolas ficaram rubras e desconjuraram o rapaz que antes era menino, mas agora que viam suas vergonhas eretas e hereges ele se transformara no mal e na moral (ou na falta dela) exposta e perturbadora. Mesmo com a revolta de todos contra ele, o menino pelado prosseguiu gritando que o diabo estava ali, à sua frente, rendendo a gôndola do mar invisível de Santa Maria, como roíam os ratos a terra amarela que ali se tinha. O padre foi o primeiro a ser chamado para contê-lo e usou de suas febres crentes:
– Menino, o que viu és tu mesmo. Está dentro de ti. Vamos lhe exorcizar, e amainar a dor e o sofrimento de seus familiares. A sua alma é perdida, menino doente, veste suas roupas, que o levaremos para a capela, a catedral, se for maior teu tormento.
O menino pelado seguiu gritando, agora sorrindo e apontando o dedo, escarnecendo da batina do padre, que mais parecia, dizia ele, mais parecia uma saia de menina tímida. Nisto o padre se irritou profundamente, e chamou a polícia. O batalhão da cidade foi o segundo a tentar contê-lo. Desta feita eram três fardados a convencer o pelado menino. Usaram de suas correntes pálidas:
– Menino, o que viu não existe, é alucinação somente, estás drogado. O mal está ao entorno. Sai desses becos perdidos, perde-se menino, com tal facilidade. O levaremos ao mausoléu, ao porão, à cadeia, lhe aplicaremos uma bela surra, quanto maior for teu tormento.
O menino pelado seguiu gritando, arreganhou ainda mais as mandíbulas, rindo desesperadamente, parecia hiena no cio, dissipava sua torrente de piadas em direção aos três fardados, e a farda deles, dizia, mais parecia uma plumagem de galinha. Alguns dos que acompanhavam a cena concordaram, e a risada deles foi o consentimento. Os três policiais se irritaram, três patetas batendo cabeça, ergueram os cassetetes, detonariam ali mesmo, como explosão, bomba e dinamite o pelado menino. Até que chegou a mãe dele. Algum abraço invisível conteve as armas dos três policiais.
A mãe se achegou, ajoelhou bem perto do menino, humildemente lhe pediu perdão. Disse que dela era a culpa. Ela era o demônio, ela o diabo. Confessou pecados. Na frente de todos, admitiu ter abandonado aquele menino, pelado, num cesto de lixo, uma tralha, enxotado, entre bananas podres, suas cascas, e vários mosquitos lhe rodeando. O menino riu e debochou da mulher, disse que mãe dele não era, e que o cabelo da velha alcançando a bunda no vestido longo, mais parecia com o rabo do demônio”.
Raphael Vidigal
Pinturas: “O Colosso”; e “Sabatina das Bruxas”, de Goya, respectivamente.