“O gozo fecunda. A tristeza dá a luz.” William Blake
O sangue, sobre a parte interna da coxa, descia em jorros. Por entre as pernas, de onde saíra, tremia o órgão sob os pelos e a pele lisa, pálida, virgem, os músculos, epiléticos e convulsivos, regurgitavam líquidas excreções. As mãos atadas, noutro momento, determinavam a arrancar uma nítida confissão. Novamente filamentos de coloração vermelha desciam pela parte interna dos braços, ansiando abrigo, todos os membros a suarem frio, em jorros. Artemisia Gentileschi conhecia as cores, as feridas e os gozos através do corpo.
Deitada na praia esticou-se inteira, a fim de compreender a real extensão de sua fatia no mundo. Não satisfeita, ao perceber a limitação imposta por vestimentas, retirou cuidadosamente, descendo por cima dos ombros, a parte superior do vestido, para em seguida, num safanão, jogá-lo inteirinho longe, pronto para ser lambido pela espuma branca do mar. Arriou a derradeira peça íntima, e, no momento, essencialmente coberta pelo sol, pôde-se refletir com mais intensidade. A areia tocou-lhe as costas como nunca antes.
Virou-se, remexeu-se, deixou-se penetrar pela areia, o vento, os sons, nas mais variáveis formas e posições conferidas ao corpo. Sujada com pedrinhas minúsculas, lama, conchas, terra e grama, e enterrada em tais criações da natureza, sentia-se mais ouriçada, permanente, limpa. Havia-lhe sido infiltrada uma parcela da existência não feita de tecidos, costuras, linha, agulha, mãos humanas trabalhando, porém pedaço de si espalhado no decorrer dos anos, e perdido em meio às evoluções.
De seus seios esguicharam substâncias de textura pastosa, e ela teve o conhecer do branco. Com o leite deu de mamar a uma criança recém-nascida em meio àquele tempo. Do cordão umbilical recém partido presenciou a primeira vez na vida a congestão de martírios, urros, guizos, concentrados numa porção de vermelho espesso e involuntário. Um homem chegou-lhe, abraçou-a as costas, num misto de violência, força e gesto do amor, recobrando-lhe a consciência feminina ao depositar, um a um, os dedos nela.
O negror a conduziu hipnótica, tomada, entregue à lassidão do corpo.
Raphael Vidigal
Pinturas: “Vênus adormecida” e “Judith decapitando a Holofernes”, de Artemisia Gentileschi.
2 Comentários
Essa gente de séculos atrás devia ter Deus muito mais próximo delas que jamais ousaríamos alcançar na atualidade. Artistas de qualquer ramo, com todas as precariedades, nasciam prontos e milagrosos. Raphael, depois vou assistir ao filme de Artemisia com atenção. Valeu muito!
“Através de descrições minuciosas dos quadros de Artemísia Gentileschi que sobreviveram à corrosão do tempo, Vreeland teoriza sobre a alma dessa mulher que tinha tudo para ter sido engolida pela vida, mas que decidiu beber até a última gota da taça de amarguras que lhe foi legada, usando uma metáfora bem renascentista, e extraiu de cada adversidade a matéria-prima de sua aclamada expressão artística. Ao longo da vida, Artemísia transformou suas dores em quadros de nus femininos – outra revolução para a época, porque os nus dela eram a máxima expressão da realidade -, metáfora para o desamparo e a superação diária das mulheres vivendo em um mundo cruelmente masculino em seu tempo e, de certa, em todos os tempos antes e depois dela.”