Bibi Ferreira arrebata o público no show “Histórias & Canções”

*por Raphael Vidigal Aroeira

“e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa.” Rilke

Agasalhado, comprimia os braços em torno do peito para afastar o bafo do inverno. Evidentemente havia-se marcado entre nós dois uma distância intrínseca. As cortinas já estavam abertas quando cheguei. No entanto, fui, contra minha vontade, obrigado a esperá-la ainda mais um tempo, enquanto a orquestra atacava ao fundo um número de Chico Buarque. Pobre de alguém se pensa que controlei os nervos. Durante toda a apresentação instrumental mantive os olhos fixos no corredor estreito, à direita, na expectativa da entrada triunfante a qualquer momento, e que, portanto, eu lhe lançasse o primeiro aceno, ao que imediatamente ela me retribuiria com um gracejo, mas nada aconteceu, e a frustração colou-se em torno de minhas expectativas novamente.

Outro número instrumental da orquestra. Infelizmente não posso oferecer relatório verossímil acerca das qualidades da mesma. Prefiro, nesse momento, ater-me à sinceridade, e concluir que meus ouvidos, embora à mercê do som em cena, praticava igualmente a saga dos olhos, que sobre o corredor estreito, à direita, concentrara toda a atenção. Um mínimo movimento, presunção do mesmo, delírio, ou pressentimento, alvoroçava-me o espírito como pombos desnorteados quando milho e alpiste lhes são jogados na praça. Nada disso, com certeza, era suficiente para apressar-lhe a entrada em cena. Certamente estava a retocar a maquiagem, concentrar-se nos temas, ajeitar o vestido para caber bem no corpo envelhecido e vivíssimo. Para malograr-me um pouquinho mais, apertei os cadarços dos sapatos.

Ante a saraiva súbita de palmas, assovios, urros, gritos, dos histéricos aos galanteadores, levantei como num susto a cabeça, e choquei-a violentamente contra os grossos braços de um robusto senhor cuja idade ultrapassava os setenta anos. Como uma rocha atingida pela água, ele permaneceu repetindo o gesto incontido e batendo uma mão à outra, enquanto eu, desnorteado e ávido, esforçava-me para ignorar a dor e prestar atenção a ela. O teu vestido marinho, enfeitado por brilhantes pedras, a pendia como num céu ao anoitecer, em que estrelas pouco a pouco se aproximam da cadente lua. Não se discernia a menor pista de esforço, enfado, mesmo persistência. Para ela estar ali se assemelhava a passear na rua, ou sair do banho e ir em direção à toalha para, com a calma de uma atividade relaxadora, secar-se.

Pois ela nem se deu ao trabalho de colocar os dedos sobre o microfone. Postou-se de frente para ele. O inanimado objeto foi tocado por um brilho intenso, causa dos holofotes para os céticos habituais, mas a dúvida perene concernia à presença de Bibi Ferreira. Afinal era sobre ela que brilhavam as pedras do vestido? Era sobre o metálico microfone? Ou sobre a platéia? O enigma do artista permanecia invicto. A voz sequer cumprimentara os presentes. A orquestra emudecera. Tudo ao redor resfolegava o silêncio. Palmas, assovios, urros, cessaram-se. A boca matinal comprimiu-se numa expressão francesa, e o simples biquinho suficientemente levou ao êxtase o mundaréu sob o qual se eclipsaram todos, exceto Bibi, a brilhar na escuridão do show “Histórias & Canções”. O brilho a era.

Bibi-Ferreira-Historias-Cancoes

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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