*por Raphael Vidigal
“Nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem” Rita Lee & Zélia Duncan
Não é de hoje que as mulheres bradam na música brasileira. O clamor pela igualdade e contra práticas abusivas vem de tempos remotos até os mais atuais. Ícones da cultura nacional influenciam e influenciaram nossas compositoras, como Leila Diniz, Elvira Pagã, Pagu e Luz Del Fuego, além de histórias cotidianas vividas por anônimas com as quais muitas se identificam; é o caso da “Maria da Vila Matilde” cantada por Elza Soares. Em verso, prosa e muito ritmo selecionamos 6 músicas feministas compostas por ninguém mais e ninguém menos do que Rita Lee, algumas das quais interpretadas por ela, e outras emprestadas a outras intérpretes que deram todo o charme às canções.
Luz Del Fuego (rock, 1975) – Rita Lee
Rita Lee certamente é a compositora com o maior número de obras identificadas ao feminismo, e também a que mais homenageou personagens desta seara. À sua maneira leve e descontraída, Rita inicia o ritual em 1975, no rock “Luz Del Fuego”, uma ode à icônica dançarina que provocou escândalo na sociedade brasileira com suas práticas liberalistas. Adepta do nudismo e do naturalismo, Luz foi brutalmente assassinada em 1967, aos 50 anos, mas seu legado de liberdade e amor continuou colocando fogo nos costumes e na hipocrisia. Sua história foi levada ao cinema em 1982, quando foi interpretada por Lucélia Santos. Luz Del Fuego foi aquela “que não tinha medo”, canta Rita.
Doce de Pimenta (rock, 1976) – Rita Lee e Roberto de Carvalho
Para Elis Regina nunca houve dissociação de música e vida; por isso a força de suas interpretações e a capacidade de chorar, rir e esbravejar no palco sem que pareça um artifício de convencimento da plateia ou pura demagogia. Em 1976, Rita Lee e Roberto de Carvalho compuseram um rock para saudar Elis, que visitara Rita na cadeia quando esta, grávida, havia sido detida por posse de maconha. Começou ali uma amizade improvável, já que as duas andavam de lados opostos na música brasileira, com Rita próxima da modernidade e Elis da tradição. Num dueto impagável das duas, elas cantam a forte personalidade de Elis Regina, uma mulher livre que escolhia o que queria seguindo seu bico.
Perigosa (música disco, 1978) – Rita Lee, Roberto de Carvalho e Nelson Motta
“As Frenéticas” foi um grupo formado pelo jornalista e compositor Nelson Motta, que acabara de inaugurar uma casa de espetáculos e teve a ideia de contratar garçonetes que, no meio da noite, subiriam no palco para cantar. O projeto deu tão certo que elas rapidamente se tornaram uma febre nacional. No período da invasão da música disco no Brasil, o grupo também trazia um discurso feminista, de liberação do prazer e da sexualidade feminina sem grilos nem dores de cabeça. É esse discurso que contamina toda a melodia e a letra da canção “Perigosa”, uma criação de Rita Lee, Roberto de Carvalho e do próprio Nelson Motta lançada em 1978 pela trupe. Um hino do prazer feminino.
Elvira Pagã (rock, 1979) – Rita Lee e Roberto de Carvalho
Outra figura aplaudida por Rita Lee foi Elvira Pagã, vedete que, já na década de 1930, causou alvoroço na comportada sociedade brasileira da moral e dos bons costumes. Atrevida e colocando a libido no próprio nome artístico, Elvira também foi adepta das práticas de nudismo. De maneira debochada, Rita repreende as expectativas do homem comum, habituado à mulher comportada e obediente na canção, composta em 1979 com Roberto de Carvalho. O contrário de Elvira Pagã, figura escandalosa e explosiva, uma mulher ciente e lutadora de todos os seus direitos e liberdades. Rita avisa com ironia aos desavisados: “Santa, santa, só a minha mãe, (e olhe lá!) é canja-canja…”.
Todas as mulheres do mundo (rock, 1993) – Rita Lee
Rita Lee havia prometido uma canção para homenagear Leila Diniz em 1972, quando a atriz morreu aos 27 anos em um trágico acidente de avião. “Todas as mulheres do mundo”, título retirado do filme que Domingos Oliveira ofereceu à ex-mulher e que também explicita a relação de reverência e fascínio que Leila exercia sobre o diretor; só ficou pronta em 1993. Um rock ligeiro, rasgado, sem lero-lero, sem blá-blá-blá, com o espírito de Leila em seu embrião. E de todas aquelas que Rita cita em sua ode à mulher moderna, dentre elas: Dercy Gonçalves, Roberta Close, Dolores Duran, Luiza Erundina, Hortência, Ruth Escobar e a própria mãe. A música foi regravada, com gana, por Cássia Eller.
Pagu (rock, 2000) – Rita Lee e Zélia Duncan
Patrícia Galvão foi uma jornalista como poucas no Brasil. Como era de se esperar, não se ateve a uma só atividade. Foi escritora, poeta, diretora de teatro, incentivadora de Plínio Marcos, musa do modernista Raul Bopp, desenhista e militante do comunismo, sendo a primeira mulher presa no país por essa motivação, no início da década de 1930. É a essa figura lendária, folclórica e real, uma mulher de carne e osso que se sabia livre e dona do próprio destino e nariz que Rita Lee e Zélia Duncan se referem no rock lançado por elas já nos anos 2000. Provas de que Pagu continua revolucionando. “Nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda…”, as três afiançam.
Fotos: Maurício Nahas; e Divulgação, respectivamente.