*por Raphael Vidigal
“Se tu vencesses, Calabar!/ Se em vez de portugueses,
– holandeses!?/ Ai de nós!/ Ai de nós sem as coisas deliciosas
que em nós moram:/ redes,/ rezas,/ novenas,/ procissões, –
e essa tristeza, Calabar,/ e essa alegria danada, que se sente
subindo, balançando, a alma da gente./ Calabar, tu não sentiste
essa alegria gostosa de ser triste!” Jorge de Lima
Havia uns discos de Amália Rodrigues (1920-1999), nascida há um século, na casa dos pais, incluindo coletâneas de fados. “Amália era uma força da natureza, voz e feeling incomparáveis. Seu talento é tão imenso que, até hoje, sua sombra paira sobre toda a música portuguesa”, exalta. Depois, durante um tempo, ao se mudar com a mãe para “a casa de três tias viúvas, bem portuguesinhas”, o contato se intensificou. “Uma delas, a tia Verônica, era muito musical, ouvia de tudo, com direito a muita música portuguesa antiga”, relembra Zeca Baleiro, 54, que acaba de lançar “Canções D’Além Mar”, em que dá voz a obras de compositores lusitanos da contemporaneidade, casos de Pedro Abrunhosa, José Afonso e Jorge Palma, dentre outros. Os registros congregam instrumentistas de Brasil, Portugal e da Orquestra de Cordas de São Petersburgo, na Rússia.
O anfitrião admite que “o título é um pouco óbvio, mas tudo bem”. “Hoje, no meio de tantos lançamentos por minuto no mundo da música, as coisas têm que falar por si, desde o nome”, justifica. A rigor, é o quarto trabalho fonográfico do artista em menos de dois anos. Nesse período, ele colocou na praça os dois volumes de “O Amor no Caos”, recheados de inéditas, e o EP “Escória”, com marchinhas satíricas de Carnaval. E já prepara mais novidades. “O Samba Não É de Ninguém”, o seu próximo álbum, só com sambas autorais, também terá capa assinada por Elifas Andreato, assim como o atual. “Elifas é um amigo de longa data, já fizemos algumas parcerias, mas é a primeira vez que ele faz uma capa sob encomenda para mim. É um craque, um artista genial”, exalta. Elifas criou ilustrações históricas para LP’s de Elis, Chico, Paulinho da Viola e vários outros.
Repertório. Além disso, Baleiro tem preenchido o tempo da quarentena com “afazeres domésticos e criativos”, como compor bastante e dar conta de trilhas sonoras para dois filmes nacionais. As incursões pela sétima arte contemplam os filmes “Oração do Amor Selvagem” (2015), “Que Amor É Esse?” (2016) e “Por Minha Rua” (2019). O isolamento social o reaproximou de “parceiros queridos e fez com que eu conquistasse novos”, informa. Chico César, Fausto Nilo, Zélia Duncan e Wado integram o primeiro time, enquanto Vinícius Cantuária e Flávio Venturini estão no segundo. Para completar, ele realiza lives com a participação de músicos portugueses a fim de divulgar o novo disco. A próxima será no dia 20 de julho, uma segunda-feira.
Baleiro confessa que estrear o repertório em meio a uma pandemia “é um pouco estranho, mas é o que temos para o momento”. Foi na década de 1980 que ele começou “a ouvir uma música mais moderna de Portugal” e se encantou. “Reuni no álbum canções que gosto de cantar ou nas quais vi a possibilidade de uma releitura interessante. A ideia era aproximar essas canções do meu universo sonoro. O critério, como sempre em meus trabalhos, foi afetivo mesmo”, comenta. Intérprete habilidoso, Baleiro traz no currículo recriações marcantes para hits nacionais, como “Bola Dividida”, de Luiz Ayrão, “Disritmia”, de Martinho da Vila, “Vapor Barato”, de Jards Macalé e Wally Salomão (1943-2003), e “Proibida pra Mim”, do grupo Charlie Brown Jr., liderado por Chorão (1970-2013).
Colônia. A faceta rendeu duas edições do álbum “Lado Z”, em 2007 e 2012. Ao entoar faixas como “Às Vezes o Amor” (Sérgio Godinho), “Ali Está a Cidade” (Fausto) e “Capitão Romance” (Ornatos Violeta), o maranhense repete o feito. Com isso ele reduz, através da música, as distâncias entre o Brasil e seu antigo colonizador, e constata “um lirismo que penso ser comum, até porque nossas cantigas de roda, trovas, marchas, quadras, tudo isso tem origem portuguesa ou ibérica”, observa. “Mas o universo melódico e harmônico da música portuguesa é muito específico, tem uma estranheza também, talvez porque eles não tenham um ‘vocabulário harmônico’ comum como nós temos, que advém de (Dorival) Caymmi, Ary Barroso e da bossa nova. Não sei dizer, estou só especulando, mas me atraem muito as soluções criativas que os compositores mais contemporâneos acharam para criar suas canções”, completa.
Nesse bojo está António Variações (1944-1984), ícone gay do pop português, de quem ele regravou “Canção de Engate”, cujos primeiros versos determinam: “Tu estás livre e eu estou livre/ E há uma noite para passar/ Porque não vamos unidos/ Porque não vamos ficar/ Na aventura dos sentidos”. Enquanto o refrão condensa: “Vem que o amor/ Não é o tempo/ Nem é o tempo/ Que o faz/ Vem que o amor/ É o momento/ Em que me dou/ E em que te dás”. Variações morreu aos 39 anos, provavelmente vítima das complicações de uma Aids jamais assumida. Baleiro afirma “não ter pensado nessa transgressão” ao cantar a música no contexto de um país que elegeu Jair Bolsonaro à presidência da República. “Mas qualquer grito libertário, ainda que involuntário, é importante nesse Brasil careta e intolerante de hoje”, garante.
Política. Ao mesmo passo, ele enxerga Portugal na direção oposta. Nas últimas eleições, o socialista António Costa, com o apoio de uma frente ampla de esquerda, saiu vencedor na disputa para o cargo de primeiro-ministro da nação. “Portugal está a nos dar uma aula de política hoje, com um regime socialista moderno e bem-sucedido. O mais curioso é que grande parte dos brasileiros que lá moram se diz ‘de direita’, têm simpatia por esse psicopata que está no poder no Brasil, mas acha demais morar em um país ‘socialista’”, ironiza. Das celebridades tupiniquins que migraram para Portugal, algumas das mais ativas nas redes são a atriz Luana Piovani, identificada com o espectro ideológico da direita, e o ator Pedro Cardoso, árduo defensor dos princípios da esquerda.
Foto: Silvia Zamboni/Divulgação.