Silvia Machete encarna cigana urbana do amor com o disco ‘Rhonda’

*por Raphael Vidigal

“O amor é mais frio que a morte; e o cinema é mais quente que a vida.” Rainer Werner Fassbinder

Esqueça as maracas e bambolês. Silvia Machete, 44, agora é “uma heroína dark, cool, uma cigana urbana do amor”. Em “Rhonda” ela encarna a persona que batiza o seu mais novo álbum, o sétimo de uma carreira iniciada no mercado fonográfico com “Bomb of Love: Música Safada Para Corações Românticos”, de 2006. Das onze canções que integram o repertório, oito são autorais e nasceram de “um coração partido”. Por isso mesmo, o figurino exuberante, exótico, com direito a pombas em cima da cabeça, deu lugar à sobriedade.

“Provavelmente é o meu trabalho mais importante até agora, sem querer colocar em ranking. Tudo começou com a minha viagem para a Califórnia (nos Estados Unidos), e se desenrolou lá. A minha mudança do Rio de Janeiro para São Paulo também interferiu. Fui para um ambiente completamente concreto. Sou uma viajante, sempre viajei pelo mundo a trabalho”, comenta a carioca, cujo pontapé em sua trajetória profissional aconteceu como artista de circo nas ruas da França. Outra novidade é que no lançamento Silvia canta somente em inglês.

Durante mais de dez anos, ela morou fora do Brasil, em cidades como Nova York, São Francisco e Paris. “Tenho afinidade com o inglês, é como uma segunda língua para mim e a poesia veio nesse idioma”, observa ela. O show de estreia aconteceria na Autêntica, em BH, mas acabou cancelado por conta da pandemia do novo coronavírus, também responsável pelo fim das atividades na casa. A ideia seria “trabalhar a parte teatral” da personagem com quem Silvia flerta há uma década. “Saio um pouco da cantora engraçada”, garante.

Estética. Ciceroneada pelo baixista Alberto Continentino e o pianista Dudinha Lima, peças fundamentais para a concepção do álbum, Silvia reafirma a sua crença de que a sonoridade construída por eles “é atemporal”. “Tem muita gente falando que tem uma pegada dos anos 70, 80. Porém, não é uma moda passageira, são canções do fundo do peito, com uma poesia real. Tudo foi muito intenso”. Além de arranjador, Continentino assina com a anfitriã a maioria das faixas, casos de “Lips” e “I Love Missing You”. Os dois são parceiros de longa data e dividem “coleções de músicas de artistas do mundo inteiro”.

O interesse pelo jazz é apenas um dos fatores que os uniu. “Nada é planejado, tudo vai acontecendo e, aí, a gente vai entendendo”, sustenta Silvia. A adoração pelo álbum totalmente em inglês gravado por Tim Maia em 1976 é mais um ponto de afinidade. Dali, eles pinçaram “With No One Else Around” para Silvia regravar. “Acho Tim Maia um cara muito importante, ele era um revolucionário do amor, meio badass, sem dedos, como a Rhonda também é, e foi ele quem trouxe a sonoridade setentista dos Estados Unidos para o Brasil”, aponta. Com Emerson Villani, ela compôs “Cactus” e “Great Mistake”, no despertar do álbum.

Outro antigo companheiro de jornada que comparece é Nick Jones, para quem não liga o nome à pessoa, escritor de séries de sucesso como “Orange Is The New Black” e “Glow”. “Durmo na casa dele quando vou para Los Angeles”, conta a intérprete. A amizade entre eles começou em Nova York, em um circo underground. Jones entrou para a companhia porque era fã de Silvia. “É um cara fodão, genial, um grande amigo que foi para Hollywood, trabalha no showbiz e agora, com essa pandemia, está louco para voltar às raízes, quer fazer um lugar de ensaios para as peças em sua própria casa”, revela a cantora.

Quarentena. Silvia admite que espera “esse pesadelo passar para a gente continuar nossas vidas ‘normais’”. “Tivemos muitas dúvidas a respeito de lançar ou não o disco, mas decidimos que a melhor coisa a fazer era botar essa história no mundo”. Diante de uma doença que já matou mais de 70 mil brasileiros, ela define o cenário como “horroroso”. “Está difícil manter a sanidade e, lançar o disco, serviu para dar uma alegria, porque recebemos um retorno muito positivo dos fãs”, afirma ela, que não poupa críticas à condução da crise feita pelo presidente Jair Bolsonaro. Entre outras, ele chamou a Covid-19 de “gripezinha”.

“Está tudo sendo feito errado, com o nosso governo cagando para o povo e só piorando a situação. E o pior ainda não chegou. Teremos anos de recessão. É triste. Acredito que, como todo mundo, tenho passado esses dias à flor da pele”, declara. A presença da arte nesse período de quarentena para ela não é casual. “Ela nos acaricia e nos permite viajar por outros terrenos, com outras visões. É uma hora para introspecção e o disco toca muito nessas questões”, assinala. A compositora se arrisca a traduzir alguns de seus versos, mas deixa um aviso: “Traduzir para o português é um perigo, fica uma coisa breguérrima”. Em determinada letra, ela fala sobre estar sozinho e junto da pessoa amada, como o tempo passa devagar e a importância de “salvar o amor no bolso”.

“Na nossa política não há amor nenhum, mas a Rhonda é uma mulher apaixonada!”, exalta. Antes dessa incursão, Silvia homenageou Eduardo Dussek em um espetáculo que a Biscoito Fino disponibilizou no YouTube. “O Dussek, na minha opinião, é um puta contador de histórias, um cara que representa a boemia do cabaré carioca. Seus personagens são melancólicos, bêbados, apaixonados. E as músicas são hilárias”, afiança. Munida de objetos que irão virar percussão, dança, projeções e uma forte presença física, Silvia alerta para o spoiler de sua próxima apresentação. Com “um outro tipo de linguagem”, o circo cederá espaço para “um lado mais sombrio”, diz. Reflexo dos tempos.

Fotos: Luana de Aquino/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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