“A arte não está no geral, mas no detalhe.” Stanislavski
Esta é a história de um senhor de idade acometido por uma tentativa fúnebre de suicídio. Que se revelou vitoriosa. O fracasso da existência terrena frente à material morte parece-me assunto para outra hora. Antes é necessário concentrar-se nesse homem, estendido sobre uma cadeira de balanço, cujo sangue agora espesso, duro, cobre-lhe o colo, onde jaz um revólver calibre 38, esvaziado da única bala que lhe penetrou o ventre cinza e insosso.
Embora a aparência de um revólver possa suscitar em alguns o medo, tal perspectiva locomover-se-á ao extremo oposto, se o apontarmos para pensamentos de infância. A maneira pomposa à qual me refiro ao denominá-lo “senhor de idade” certamente incomoda o falecido, que mais tarde verão, ainda vive. Por isso o trataremos por velho, não idoso, e aqui revelamos as dificuldades advindas da diabetes, para caminhar, e a praticamente extinta visão.
Era, então, um velho quase cego, e manco. Mas em Alegrete, uma fria cidadezinha interiorana do Rio Grande do Sul, a profecia de ciganas assustava aos adultos, mas não crianças. Como o tal ditado que nos diz: “praga de urubu não pega em beija-flor”. O jovem de cabelos soltos, bem formado queixo e delimitado rosto grego livrou-se espertamente do destino trágico. O espírito de rapaz galante burilava carrinhos de rolimã.
Na entrada da tenda, donde saiu sob numerosos aplausos, o suor ainda lhe deixava o respirar sôfrego, como em água do mar profunda de sal após o mergulho. A dificuldade para bombear o sangue para os pulmões percebeu-se sentimento corrente, itinerante, que o acompanhava para qualquer viagem, fosse de trem, cavalo ou voo. Era o dom se moldando no ser de barro, osso, carne, veia, e o tão petulante coração.
Com o que tinha às mãos, sensíveis e audaciosas, comprou passagem para São Paulo. No umbigo do mundo, trocou nomes, crenças, sexos, rostos. Deteve-se, de pé, em panteão, e por um estranho costume, aderiram-lhe, antes da alcunha do batismo, outra, respeitável, sonora: ator. Entendeu, imediatamente, o significado da “palavra”. E percorreu, aos poucos, com singular perspicácia e estudo, as camadas intra-moleculares do nobre ofício.
O tempo, então, balança-lhe naquelas mãos qual carrinho de rolimã: controlava, soltava, dominava, dava asas à imaginação. Ora padre temendo o Diabo, outra ateu, comunista, Maia. “Um exibicionista, um palhaço”, assim referia-se a si, e aos colegas de profissão por quem mantinha certo respeito, somente. Outros ficavam de fora, jamais lembrados com tais gracinhas saborosas. E obviamente honradas.
O nome de batizado veio com toda força, prova, no dia da ressurreição. Walmor Chagas: que expôs as feridas, atentados, contra, a favor da humanidade, por conta de um amor largo, irrefreável, dedicado à Cacilda Becker, esposa de doze anos, fundadora atriz brasileira. À Ziembinski, Stanislavski, ao Teatro, ao Cinema, a novela – para polpudos bolsos -, delicados mestres de um discípulo do pavor. Basta vê-lo na “Valsa para Bruno Stein”, ou recorrer à memória onde os olhos crespos de “Um Homem Indignado” conta-nos a cruel façanha.
Afinal a vida vertida à Arte, nada mais, do que dramática.
Raphael Vidigal
8 Comentários
Grande ator! Ele merece.
Que pena né? Tanto talento e morreu deprê
Bela matéria, Raphael, escrita com maestria! Viva o grande Walmor Chagas!
Muito bom, Raphael!
Teatro: Walmor Chagas
Excelente ator! Quanta saudade…
Seu trabalho é maravilhoso, rico em conteúdo, eu q agradeço
Parabéns pelo texto, Raphael Vidigal. A história do Walmor Chagas me faz lembrar o enredo do livro “A humilhação” do Philip Roth, que vale uma leitura atenciosa. Convido-te para visitar o meu blog também: http://literomaquia.blogspot.com.br . Abraço.