“Nestas noites, na Itália inteira, há telescópios voltados para o céu. As luas de Júpiter não barateiam o leite. Mas nunca foram vistas, e agora existem. O homem da rua conclui que poderiam existir muitas outras coisas também, se ele olhasse melhor.” Bertolt Brecht
Um dos fundamentos da cultura, mas, sobretudo, da arte, é que ela gera perspectiva, te tira do lugar de conforto ou lhe permite colocar-se no tão famoso lugar dos outros. Mais do que isto, abre (não fecha) parênteses, expande as possibilidades, sublima e fricciona os horizontes, em suma, oferece a liberdade, pois a mortal função da arte é propor a liberdade, ou, ao menos, alguma libertação. Daí que as pessoas percam de vista sua importância, pois impalpável, afinal de contas ela age sobre os modos, comportamentos, visões, e, em última análise, sobre o coração, pois é seu dever transformar não através de teses elaboradas e argumentos com prazo científico de validade, mas através da emoção, tocando-nos. Tenho uma regra básica para definir se algo me comoveu no terreno da arte: é preciso arrepiar-me. A partir deste instinto, deste gesto, percebo e descubro se algo me agradou ou não, e, só depois disso, parto para elaborar a análise em cima da crítica das qualidades e falhas.
A arte ensina, por exemplo, a abandonar a perspectiva que sustenta alguns discursos de índole egocêntrica e é capaz de alterar, por conseguinte, nossa percepção política. Como exemplo: é de praxe em debates acalorados acerca da diversidade sexual que alguma voz impetre a seguinte pergunta: “– Mas você gostaria de ter um filho homossexual?”. Ao que inverto a lógica, partindo de um pressuposto mais abrangente e menos calcado na minha individualidade, como se fosse eu o centro do mundo e somente por mim tivesse que tomar todas as decisões. Afinal de contas, há o outro, colocar-se no lugar do outro. “– Mas e se você fosse homossexual, gostaria de ter um pai preconceituoso?”. Essa perspectiva só será possível por aqueles que abandonarem a segurança fictícia do próprio umbigo, a que a competitividade estimulada pelo sistema capitalista tanto e tanto nos impele, fundamentada em conceitos nutridos pela pompa e o egoísmo, como a mal fadada “meritocracia”.
Pois peço, por fim, atenção a uma outra invenção da linguagem humana que supera até o que se coloca concretamente frente a nossos embotados olhos. É da raiz do preconceito considerar-se melhor ou superior ao outro. É pelo preconceito que alguns buscam afirmação, no que se revela, além de insegurança, tão somente um traço mal consumado de ignorância. Pois se a morte iguala a todos, somos todos iguais? Bem poderia. Não fosse o discurso vir-nos desmentir. É como argumenta Brecht em sua obra-prima dramatúrgica em que se utiliza da “Vida de Galileu” para debater questões perenes à sociedade: “Eu mostro as minhas observações e eles sorriem, eu ofereço o meu telescópio para que vejam, e eles citam Aristóteles”. A própria criação humana vem a intervir a favor dos preconceituosos, pois, embora pareçamo-nos igualados na morte, de fato, seremos diferenciados em sua posteridade. O céu para a elite, o purgatório para a classe média e o inferno para a favela. Como quem diz: o inferno é mais animado, basta comparar a capoeira à valsa.
Raphael Vidigal
Imagens: “Os Operários”, obra de Tarsila do Amaral; e foto do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, em depoimento à Corte Interamericana de assuntos políticos, durante a década de 1940, respectivamente.