Relembre 13 sambas-enredos que fizeram história no Carnaval brasileiro

*por Raphael Vidigal

“Reteve o movimento dos dois corpos e rolou inteira sobre a impossibilidade do enredo.” Ana Cristina Cesar

Hoje é Carnaval. Amanhã ainda é carnaval. Não porque esteja próxima uma Quarta-Feira de Cinzas. Nem porque virou farra o som de buzinas. Mas porque Carnaval está além de data no calendário. É a heroica alegria da bagunça e da patuscada. De se fantasiar e mascarar e perceber o desarrumado cenário belo de fantasias, máscaras e perdidas ilusões brilhantes. No carnaval, face desordeira da humanidade. Face divertida, bem resolvida, com muito alarde. Se tudo arrumado perde contato com a superfície mais fina de uma mera alegria, não deixe de brincar no carnaval e de capturar o sentido político dessa festança. Ainda mais com tais sambas-enredos que recontam a nossa história.

“Exaltação a Tiradentes” (samba-enredo, 1949) – Mano Décio da Viola, Estanislau Silva e Penteado
“Exaltação a Tiradentes” nasceu de um sonho do sambista Mano Décio da Viola, que agregou, aos versos recebidos durante a noite, outros propostos por Estanislau Silva e Penteado. Antes da consagração, Décio e Silas de Oliveira haviam oferecido três sambas com o mesmo tema para a Escola de Samba do Império Serrano. Passada a frustração, a música foi cantada na avenida em 1949, mas só chegou ao disco em 1955, na gravação de Roberto Silva.

Outros intérpretes não menos tarimbados a registraram posteriormente, dentre os quais Jorge Goulart, com seu vozeirão, e a irrepreensível Elis Regina, além de Maria Creuza, Cauby Peixoto e Mestre Marçal. Pioneiro, como o seu inspirador, é considerado o primeiro samba-enredo a ultrapassar os limites carnavalescos.

“Seis Datas Magnas” (samba-enredo, 1953) – Candeia e Altair Prego
Portelense histórico, Candeia tinha apenas 17 anos quando, em 1953, compôs o samba-enredo “Seis Datas Magnas” (com Altair Prego), o primeiro a conseguir nota máxima, e que valeu à escola o título de campeã. Décadas depois, em 1975, ele iria fundar o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, ao lado de nomes como Nei Lopes e Wilson Moreira.

Tido como um policial truculento e machista, Candeia teve que abandonar a profissão depois de levar cinco tiros, e passou a se locomover numa cadeira de rodas. Nessa condição, ele gravou oito discos e criou a clássica “Preciso Me Encontrar”. Gravada por Cartola em 1976, a canção eternizou esse triste lamento: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar”.

“Fantasia de Minas Gerais” (samba-enredo, 1958) – Delê e Tand
Ary Barroso, mineiro de Ubá, era cobrado por criar canções exaltando o Rio de Janeiro e a Bahia e não dedicar nenhuma linha melódica a seus conterrâneos. Foi como uma resposta ao compositor de “Aquarela do Brasil” que a dupla formada por Delê e Tand compôs, em 1958, o samba-enredo “Fantasia de Minas Gerais”, lançado naquele mesmo ano pelo cantor Gilberto Santana em um disco de 78 rotações. Posteriormente, os também mineiros Agnaldo Timóteo e Acir Antão voltariam a essa bela peça, fruto de uma provocação, como deixa claro nos versos de abertura. E Belo Horizonte também é exaltada.

“Chica da Silva” (samba-enredo, 1963) – Anescar do Salgueiro e Noel Rosa de Oliveira
Carnavalesco de primeira linha e horas a fio, Monsueto era também um grande intérprete, e foi o responsável por cantar na avenida o samba enredo do Salgueiro no ano de 1963, o histórico e inesquecível “Chica da Silva”, de autoria de Anescar do Salgueiro e Noel Rosa de Oliveira.

A letra revive a trajetória de uma das mais simbólicas personagens do Brasil, a escrava mineira Chica da Silva, natural do Serro e que viveu em Diamantina, alforriada após se casar e ter treze filhos com o rico contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira.

Chica aparece em outras letras do cancioneiro brasileiro, como, por exemplo, na música de Jorge Ben Jor. Embora tenha desfilado neste ano pelo Salgueiro, Monsueto nunca se vinculou a nenhuma escola de samba específica, sendo bem recebido em várias delas.

“Aquarela Brasileira” (samba-enredo, 1964) – Silas de Oliveira
Roberto Ribeiro não era de inventar. Ele sabia que sua voz, límpida, bem timbrada, gostosa de se ouvir, era suficiente para contornar as emoções das canções. Logo, cantava com despojamento e simplicidade, duas características marcantes de sua personalidade. O samba que levou para os discos era o mesmo que tocava no seu terreiro e na quadra da Império Serrano.

Em 1972, Roberto já era um nome incensado pelos colegas quando foi apadrinhado por Elza Soares, com quem gravou três compactos até estrear no disco “Sangue, Suor e Raça”, verdadeira aula de ritmo e divisão melódica. Roberto Ribeiro também regravou “Aquarela Brasileira”, um samba-enredo de Silas de Oliveira.

“Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio” (samba-enredo, 1965) – Dona Ivone Lara e Silas de Oliveira
Dona Ivone Lara foi a primeira mulher a ter um samba-enredo cantado na avenida no Brasil. Como se não bastasse, mulher negra, pobre, imersa em reduto machista e de preconceitos. Mas Dona Ivone Lara venceu todos eles, com voz mansa e andar macio, embora se impondo pela graça de suas músicas e o talento que comprovou na raça.

Foi ao lado de Silas de Oliveira que Dona Ivone Lara tornou-se a primeira mulher a derrubar barreiras e preconceitos e invadir esse ambiente marcadamente masculino, com a coautoria de “Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio”, périplo que reconta a história de magia, aventura e sedução do Brasil imperial e a chegada do período republicano. Não foi sem méritos que a Império Serrano tornou-se a grande vencedora daquele carnaval de 1965.

“O Mundo Encantado de Monteiro Lobato” (samba-enredo, 1967) – Batista da Mangueira, Darcy da Mangueira, Luiz, Dico, Jurandir e Hélio Turco
Em 1967, a pioneira Elza Soares tornou-se a primeira mulher a puxar um samba-enredo na avenida, com “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, de autoria de Batista e Darcy da Mangueira, Hélio Turco, Jurandir, Luiz e Dico. A relutância em ser precoce não infringiu à Elza a fuga de seu destino.

Tudo lhe veio cedo, lhe foi cedo, muito permaneceu. Por exemplo, o canto, a vontade, a luta cotidiana contra o infortúnio, a certeza da alegria. Como diz o bloco criado por ela própria, “Deu a Elza” na avenida! A música também foi gravada por Eliana Pittman, Beth Carvalho, Rosemary e outras cantoras de muito prestígio.

“Heróis da Liberdade” (samba-enredo, 1969) – Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola
Silas de Oliveira morreu e nasceu numa roda de samba. Embora o pai não tenha concordado, por suas convicções pastorais e protestantes, Silas começou a ser Silas quando fundou, junto de seus pares, dentre eles o inseparável Mano Décio da Viola, a Escola de Samba do Império Serrano, e para sempre foi batizado entre batuques, pandeiros e tamborins. Mas é inegável que a principal contribuição de Silas se dá, em especial, nos terreiros dos sambas-enredo. Também conta no vasto currículo de sambas-enredo criados por Silas de Oliveira, e que ultrapassaram as barreiras do tempo, a canção “Heróis da Liberdade”, que sofreu retaliações da censura.

“O Amanhã” (samba-enredo, 1979) – João Sérgio e Didi
Muda o ritmo, muda o gênero, o autor, o intérprete, e até o ano muda. De velho, passa a ser novo, mas a mensagem é sempre a mesma. Adoniran Barbosa em parceria com o maestro Hervé Cordovil conclama para que o desesperado João não perca a esperança, “que amanhã tu levanta um barracão muito melhor…”, Chico Buarque declara logo nos versos inicias que “amanhã vai ser outro dia”, e Gonzaguinha reafirma que “começaria tudo outra vez, se preciso fosse…”.

Já Caetano Veloso vaticina, numa das homenagens ao sociólogo e ativista Betinho: “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”. Guilherme Arantes, em sua belíssima balada aposta: “amanhã, será um lindo dia, da mais louca alegria que se possa imaginar…”. É uma mensagem parecida com a do samba-enredo “O Amanhã”, levado à passarela pela União da Ilha em 1979, e gravado em disco pela cantora Simone no ano de 1983. Um samba de João Sérgio e Didi.

“Hoje Tem Marmelada” (samba-enredo, 1980) – David Corrêa, Jorge Macedo e Norival Reis
Uma batucada feroz e emocionante embalava os versos que levaram a Portela a ser campeã no Carnaval de 1980, na contramão da Vieira Souto, vindo pela Praça da Paz até o Arpoador, onde seria inaugurado o circo, enquanto o sol se punha no horizonte cálido do Rio de Janeiro.

“A brisa me levou/ Para um reino encantado/ Onde eu me fiz menino-rei/ E era o circo/ O meu palácio dourado/ Como é doce ser criança outra vez/ E me atirar nos braços da alegria/ Quero me perder na minha imaginação/ E brincar na ilusão”, cantava a trupe, que, naquele entusiasmo mágico, transformava as alas da escola de samba nos grupos de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone (de Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães) e Manhas e Manias (de Débora Bloch e Andréa Beltrão) e no coletivo de dança Coringa (de Deborah Colker e Graciela Figueroa).

“A gente chegou lá e o nosso sonho estava de pé, o circo montado, e começava ali uma revolução cultural na beira da praia”, sintetiza Evandro Mesquita. As lembranças são da inauguração do Circo Voador, na praia do Arpoador, em 1982, quando a Blitz se apresentou pela primeira vez no local.

“Liberdade, Liberdade, Abre as Asas sobre Nós” (samba-enredo, 1989) – Niltinho Tristeza, Preto Joia, Vicentino e Jurandir
Responsável por dar à Imperatriz Leopoldinense o título do Carnaval de 1989, o samba-enredo “Liberdade, Liberdade, Abre as Asas sobre Nós” é um marco da canção popular brasileira, tanto que o seu título tornou-se praticamente um ditado nacional, repetido para representar as mais diversas situações em que se apresenta a necessidade de escapar à repressão e clamar pela liberdade.

Ainda hoje, este samba é considerado um dos mais representativos da história do Carnaval carioca. Niltinho Tristeza, o autor mais conhecido, ficou famoso depois que sua canção “Tristeza”, parceria com Haroldo Lobo, foi gravada por Jair Rodrigues, em 1966. Como se constata, Niltinho sabia versar sobre tristeza e liberdade com igual compreensão da força desses sentimentos na nossa vida. A composição foi regravada por Dominguinhos do Estácio, no LP “Gosto de Festa”, e Dudu Nobre.

“Marta do Brasil” (samba-enredo, 2019) – Cláudio Russo, André Diniz e Altamiro
Maior artilheira de Copas do Mundo, eleita seis vezes a melhor jogadora pela FIFA – um recorde entre homens e mulheres – Marta é referência absoluta no mundo do esporte, uma verdadeira rainha, como compreendeu a escola de samba Inocentes de Belford Roxo, que, em 2019, desfilou na avenida com o samba enredo “Marta do Brasil: Chorar no Começo para Sorrir no Fim”, de Cláudio Russo, André Diniz e Altamiro, puxado por Pixulé e Tem Tem.

A música ganhou uma interpretação, ao cavaquinho, da própria homenageada, que postou o vídeo em suas redes sociais. Alagoana, Marta conquistou duas medalhas de prata com o Brasil, nas Olimpíadas de Atenas e Pequim, duas de ouro nos Jogos Pan-Americanos de Santo Domingo e do Rio de Janeiro e mais uma de prata na Copa do Mundo da China, de 2007.

“História pra Ninar Gente Grande” (samba-enredo, 2019) – Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo, Deivid Domenico, Tomaz Miranda, Mama, Ronie Oliveira, Marcio Bola e Danilo Firmino
Marina Íris estava ao lado de Marielle Franco (1979-2018) durante a campanha que a elegeu à Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo PSOL, em 2016, com mais de 46 mil votos. Maria Bethânia lançou o álbum “Mangueira: A Menina dos Meus Olhos”, onde regravou o samba-enredo da Mangueira que saiu vencedor em 2019, “História pra Ninar Gente Grande”, que enaltece o legado de Marielle.

O citado samba-enredo foi interpretado também por Marina Íris em uma sessão solene na Câmara dos Deputados, em Brasília, em março, um ano após a morte de Marielle. E também entrou como uma das faixas de “Voz Bandeira”, seu terceiro disco, dedicado à vereadora que ajudou a eleger, mas que ficou apenas um ano e dois meses no cargo. Além de Marielle, outras mulheres são exaltadas.

*Bônus
“Grandes Membros” (samba-enredo, 1991) – Wandi Doratiotto

Ao encerrarem as atividades, tanto o Rumo quanto o Premê, os principais grupos da chamada Vanguarda Paulista, colocaram na praça álbuns gravados ao vivo, e experimentaram com êxito o formato. Antes, em 1991, o Premê lançou “Alegria dos Homens”, em que se destacava o irreverente samba-enredo batizado de “Grandes Membros”, que seguiria com Wandi Doratiotto em sua carreira-solo. Ali, ao invés de saudar personagens da música popular, como de hábito, ele provoca uma inversão e leva o caminho à música erudita, sem dispensar, claro, o sempre presente bom-humor. Desfilam nessa passarela nomes como Beethoven, Mozart, Strauss, Bach, Debussy e Ravel.

Pintura: Carybé/Reprodução.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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