Prefácio para “O sol áspero” de Raphael Vidigal: Copo vazio

“Faça milagres se quiser desvendá-los. Só assim chegará lá.” Godard

Fiquei por muito tempo resistindo antes de escrever este prefácio. Pensava: qual a necessidade de fazê-lo se, aqui, tudo já está tão evidente e oculto? Qualquer coisa que escreva irá destoar dos ritmos, das sonoridades, das construções tão cuidadosamente armadas deste livro que é como um pequeno mundo circular e, ao mesmo tempo, aberto, com sua lógica própria e seus enigmas. O prefácio corre o risco de mitigar as linhas de sentido, de explicar, quando o livro não quer explicar nada, assim como a cidade que inventa não explica nada.

Mas, afinal, já comecei. Talvez seja interessante voltar um pouco. Raphael me pediu uma imagem para a capa. De uma primeira leitura ainda muito intuitiva, lembrei-me de um desenho que fiz há alguns anos. Tentei fazer outras ilustrações, mas esse desenho ainda insistia e, ao final, foi realmente o que Raphael mais gostou. Nele, uma luz fria artificial hospitalar ilumina uma cama de solteiro. A cama está coberta por uma pirâmide de folhas. Essa ilustração veio de um sonho que tive e cria um enigma. Há um frescor das folhas e a frieza da luz. Como o “tártaro que suja o poema”. Como a lembrança da finitude da vida no caracol que desliza entre as frutas da natureza morta. Como um vanitas.

Uma mesa de escritório, o sol áspero ilumina a mesa, uma xícara de chá. Um homem escreve ou tenta escrever. Fiquei com esta imagem ao final da leitura de “O sol áspero” de Raphael Vidigal, talvez dela nasçam todas as outras imagens. O escritor, na aspereza dos dias, tenta retirar uma cidade das palavras.

Cenas breves iluminam fragmentos da vida de um personagem. E, logo, de outro e de outros mais que, pouco a pouco, surgem das palavras com suas vidas bem concretas e vão constituindo o corpo de uma cidade.

A cidade recebe o nome de Santa Maria e é também uma mulher: Ágata. Esse nome parece se “colar” a outras cenas e personagens, transtornando o propósito inicial das mesmas como uma obsessão ou como aquilo que se perdeu e que se impregna em tudo o que se vê. Um estupro se esboça e dele uma menina morta, coronéis, engenhos, extermínio indígena, desmatamento, progresso… A cidade parece nascer dessa violência, o corpo da menina estuprada é sua fundação. Ágata é também Maria, a menina morta sem nome, é a cidade Santa Maria e é seus elementos revoltosos: o menino pelado e endemoniado que desnuda toda hipocrisia ao redor, uma onça que ameaça os habitantes… A cidade-onça-mulher, exilada e clandestina, nasce de uma violência e violenta quem vive dentro dela, envolvendo tudo numa paralisia do tempo e dos gestos, num estado sem passado e sem futuro. Num mundo de cartas de amor e de analfabetismo, de cartas que não puderam ser entregues, de vidas que não se deram por inteiro. Num mundo de instantes concretos iluminados asperamente, sem redenção.

Os instantes se desenham como na fotografia: a superfície fotossensível recebe essa luz que revela a imagem, a mesma luz que, por excessiva, vela a visão logo em seguida. Lembra o clarão do relâmpago benjaminiano, mas, aqui, a iluminação fugaz não ilumina (de súbito significado), mas é inclemente e aponta para um esvaziamento ou ao esgotamento do sentido.

Do esgotamento das letras, revela-se o escritor, como um demiurgo sem esperança. Impregnando as palavras de substâncias, por insistência. O sol áspero, a mesa do escritório, a xícara de chá, o branco da página, sonoridades, palavras, imagens, instantes, habitantes, uma cidade! habitantes, instantes, imagens, palavras, sonoridades, o branco da página, a xícara de chá, a mesa do escritório, o sol áspero… Da mudez do vazio à arquitetura do enigma, à exaustão do imaginado, à mudez do vazio novamente. Mas o mesmo vazio do começo?

Clara Albinati

Fotos: João Paulo Vale/Divulgação.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]