Paixão Cearense: A música que vem do Ceará

“um círculo de pássaros e chamas.
E pelos canaviais,
testemunhas que sabem o que falta.
Sonho concreto e sem norte
de madeira de guitarra.” García Lorca

musica-ceara

O Raimundo mais famoso do Ceará levou as velas do Mucuripe para velejar o Brasil inteiro. Seu parceiro na música mostrou aos jovens seu descontentamento com a própria geração. O poeta que nasceu no Ceará era na verdade agricultor. O poeta que levou essa paixão no nome não era cearense. O grupo que se tornou mais conhecido exibiu com orgulho seus “Quatro Ases e um Coringa.” Outro compositor daquela terra desfilou na avenida seu bloco do prazer. E o letrista mais proclamado nas canções do Rei do Baião foi a síntese desse povo rico e diverso.

Mucuripe (1972, MPB) – Fagner e Belchior
Fagner e Belchior se conheceram em Fortaleza, depois do primeiro sair de Orós e o segundo deixar Sobral. Juntos, ao lado de Rodger Rogério, Ednardo e Ricardo Bezerra formaram o “Pessoal do Ceará”, que se apresentava semanalmente em um programa de rádio. Levando na bagagem as lembranças de sua terra, seguiram roteiros distintos, Fagner indo para Brasília estudar arquitetura e Belchior indo para o Rio de Janeiro estudar medicina. Mas em 1971, no Festival de Música Popular do Centro Universitário de Brasília, Fagner inscreveu uma música que havia feito com o conterrâneo agora distante. “Mucuripe”, destino solitário das jangadas em Fortaleza, tirou o primeiro lugar e atentou os olhares brasileiros para a permanente poesia das águas da canção cearense. Um ano depois, a música foi interpretada por Elis Regina. Com esse êxito, Raimundo Fagner mudou-se para o Rio de Janeiro e Belchior para São Paulo. Além disso, Fagner fez seu próprio registro, na série “Disco de Bolso”, lançada pelo jornal “Pasquim”, com Caetano Veloso cantando no outro lado do compacto “A Volta da Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Refletia no canto arraigado de Fagner, a permanente poesia das águas. Da flor fez-se o agasalho. Da vela que ilumina o mar, a esperança de um rapaz novo encantando.

Como nossos pais (1976, MPB) – Belchior
Outro sucesso de um cearense na voz de Elis Regina foi a cultuada “Como nossos pais”, hino composto por Belchior que lamentava as não conquistas de sua geração. Traçando um paralelo interessante sobre a história da humanidade, o compositor sentenciava que estavam todos fadados a cometerem os mesmos erros do passado. Usando imagens fortes e carregadas de ironia, a música se tornou uma das mais conhecidas na voz de sua intérprete definitiva, que a gravou em 1976. Naquele ano, Belchior ainda lançou “Apenas um rapaz latino americano” e “A Palo Seco”. E a onda hippie passaria em seus versos se transformando justamente naquilo que mais repudiou.

Bloco do Prazer (1979, frevo) – Fausto Nilo e Moraes Moreira
O compositor Fausto Nilo conheceu os integrantes do “Pessoal do Ceará” ainda na década de 70, e desde então passou a ser gravado por cantores como Fagner e Belchior, e mais tarde, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Geraldo Azevedo, e outros. No ano de 1979, o “Trio Elétrico Dodô e Osmar”, banda criada pelos inventores do Trio Elétrico na Bahia, lançou no carnaval a música “Bloco do Prazer”, parceria de Nilo com o novo baiano Moraes Moreira. O frevo, em ritmo acelerado, é uma conclamação desenfreada à alegria e à festa. Gravada por Nara Leão em 1981, tornou-se sucesso nacional na voz de Gal Costa, um ano depois. Era apenas o início do desfile daquele cearense de Quixeramobim.

Asa Branca (1947, toada) – Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga
Humberto Teixeira foi parceiro de Luiz Gonzaga em verdadeiros clássicos da canção brasileira, além de ter fundado com ele o popular baião. Nascido em Iguatu, no interior do Ceará, Humberto recebeu de Luiz Gonzaga a missão de finalizar uma música que versava sobre uma certa lenda nordestina. A lenda era sobre “Asa Branca”, uma conhecida pomba brava que deixa para trás o sertão quando a seca se acomete dele. O compositor não só finalizou a música como escreveu versos de profunda sensibilidade, entre eles “quando o verde dos teus óios se espaiá na prantação.” A toada do homem que imita o vôo do pássaro tornou-se emblemática na união entre o cearense Humberto Teixeira e o pernambucano Luiz Gonzaga.

Kalu (1952, baião) – Humberto Teixeira
A musa de verdes olhos de Humberto Teixeira, realmente existiu, como ele confessou anos mais tarde em entrevista: “Na verdade, Kalu existiu. Só que com outro nome, naturalmente”. O baião de sua autoria foi um pedido feito diretamente por Dalva de Oliveira, que desejava incluir uma música nordestina na excursão que faria à Europa com a orquestra de Roberto Inglez. Gravada por ela em 1952, foi um dos grandes sucessos daquele ano, e mais uma dentre as muitas músicas famosas do cearense Humberto Teixeira, regravada por nomes como Chico Buarque e Eliana Pittman.

Cabelos brancos (1949, samba) – Herivelto Martins e Marino Pinto [cantada pelos Quatro Ases e um Coringa]
Os conflitos amorosos entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins deram início a uma briga pública e músicas que se tornaram eternas no cancioneiro brasileiro. Entre elas, “Cabelos brancos”, de 1949, gravada pelo conjunto cearense “Quatro Ases e um Coringa”. O grupo formado pelos irmãos Evenor, José e Permínio Pontes de Medeiros, e ainda André Batista Vieira e Pijuca fez sucesso no final da década de 40 ao lançar o rancoroso samba de Herivelto. Outros sucessos do quinteto foram “Baião de Dois”, de Luiz Gonzaga e do conterrâneo Humberto Teixeira, “Baião”, também da dupla, “Trem de Ferro”, de Lauro Maia e “Onde estão os tamborins” de Pedro Caetano. Em 1957, as cartas do baralho cearense decidiram cada uma trilhar o seu próprio caminho.

A triste partida (1965, repente) – Patativa do Assaré
O cearense Antonio Gonçalves da Silva, nasceu em Assaré, e ficou conhecido como Patativa de sua cidade. Seguiu a profissão do pai e tornou-se agricultor, mas ficou conhecido como poeta. Com pouca formação escolar, aprendeu mexendo na terra a irrigar as palavras que sentem o coração das pessoas. Principalmente as pessoas do seu nordeste, da sua aldeia inabitada que ele levou ao mundo. No ano em que se iniciava a ditadura no Brasil, o brilho de um monarca deu luz à arte de Patativa. Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, o viu recitar os versos de “A triste partida”, e decidiu que lhe cabiam as harmonias de uma música. Em 1965, como num repente, a caminhada triste e árdua do nordestino em busca dum melhor destino ganhou os ares de todo o país. A seca poesia clara de Patativa impregnava todo o Brasil. Dali em diante, seus livros de poesia poderiam ser lidos ou escutados, ou ainda admirados, por aqueles que o vissem trabalhando ao vento.

Luar do Sertão (1914, toada) – Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco
Catulo da Paixão Cearense nasceu na capital do Maranhão, e aos dez anos foi para o interior do Ceará. Interior que amaria muito mais do que qualquer capital. Catulo era apaixonado pelas coisas singelas, simples e ingênuas e delas fez a obra-prima de suas canções. Eternizada na memória afetiva do povo brasileiro, “Luar do Sertão” foi composta por ele em 1914, e gerou divergências com relação à autoria da música. Enquanto Catulo afirmava que a havia composto sozinho, inspirado por uma música folclórica, outros como Heitor Villa-Lobos e Almirante diziam que a melodia era de João Pernambuco, violonista semi-analfabeto. O que não se discute é a lembrança imediata de cada brasileiro quando se começa a tocar o refrão que remete ao balanço de uma rede.

Raphael Vidigal

Lido na rádio Itatiaia por Acir Antão em 17/10/2010.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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