Os castelos de outrora

“Fitávamos as nuvens do espaço.
Que imensas! Que bonitas e que estranhas!
E ficávamos horas a pensar
Se seriam castelos ou montanhas…” Florbela Espanca

william-turner

Reincide o sol áspero. A brisa roça nos cabelos e sonhos, entre eles, dedos – tentando tocar o intocável. Fica a brisa, fumegante e etérea, com labor. E o sorriso ocre, incolor e de incenso acena com a palma a preencher. Nunca se sabe até onde vai, qual lugar cai, a necessidade humana. Desprovidos ao celular reclamam do esgoto a céu aberto. Ralhou talhou o ranho uma aspa uma farpa uma casta cultura inválida. As palavras cansam. Mas a gente, as pessoas carregando frutas nas sacolas não se diz senão através do afeto. Após uma suada viagem de ônibus o refresco gelado seca os pelos encharcados por expectativas lânguidas. A capinar as lembranças cujo destino se encarregou de tornar fluidas, boné patrocinado sobre a cabeça oval, o velho.

José é nome comum, mas não menos poético afinal contemplado por Carlos Drummond. O bigode bem penteado pela armadura prateada apreendida em chuva, roça, café quente e biscoito polvilho. Como Admeto em sua caça ao javali. É incontável o bulir de dedos toscos amassando a cara rugosa qual ferro de passar sobre a camisa usada no dia de trabalho anterior, gasta de viver. Essa mania desaforada e interiorana de arraigar a espontaneidade ao charme. Minutos de conversa lesa, leda, prosa insuficiente. Na pausa da vida fragmentada o ocaso a transparecer rebela com a agressão primeira: aquela que fez do homem a fruta do pecado e circunstância de si mesmo.

O velho com inocência e sabedoria como é. Não há uma palavra. Conta o olhar, o terço, o tenro acolhimento à xícara servida de líquido quente a respingar coração gelado. O dele treme, refuga o de outro alguém. Trôpego cabe no movimento à hora em que a estrela, estreita curva, reage na direção improvisada. José o sujeito frouxo de andar e mole de corpo, mas duro, rijo o bastante no referente à honra e vergonha. Ao atender ao chamado José é um boi: caminha para o matadouro. Crente nos homens e as boas intenções, os desejos inúteis de perpetuação. É essa vontade de existir e erigir palhoças, os castelos de outrora, a tornar tão vulneráveis.

turner-obra

Raphael Vidigal

Pinturas: Obras de William Turner.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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