“E pouco a pouco as fisionomias se confundiram em sua memória, ela esqueceu-se das árias das contradanças, não via mais tão nitidamente as librés e as salas, alguns detalhes apagaram-se, mas o pesar permaneceu.” Gustave Flaubert
Criado há uma década, o Festival Varilux não esperava comemorar a data à distância, mas, diante da pandemia do novo coronavírus, não teve outra alternativa. As vantagens para o espectador começam pelo bolso. Online e gratuita, a iniciativa dedicada ao cinema francês oferece títulos que já haviam sido apresentados em edições anteriores. Ao todo, são 50 longas-metragens, disponíveis no site http://festivalvariluxemcasa.com.br/, todos recentes.
Os mais antigos são de 2011, caso da animação “Um Gato em Paris”, da dupla Alain Gagnol e Jean-Loup Felicioli. No mesmo segmento, marcam presença as adaptações da franquia “Asterix”, cujo cocriador (ao lado de René Goscinny) Albert Uderzo, morreu em março, aos 92 anos. Estão lá “Asterix e o Domínio dos Deuses” (2014) e “Asterix e o Segredo da Poção Mágica”, que, no Brasil, teve como dublador do protagonista o humorista Gregório Duvivier, conhecido por seu trabalho no canal Porta dos Fundos. A variedade de gêneros é contemplada com dramas, comédias, documentários, suspense, musical, aventura, romance e até aqueles que borram essas definições. No entanto, prevalecem as películas destinadas a emocionar o público.
A se destacar a participação de Catherine Deneuve em três produções: “O Ignorante” (2016), de Paul Vecchiali; “O Reencontro” (2017), dirigido por Martin Provost; e, por fim, “A Última Loucura de Claire Darling” (2019), de Julie Bertuccelli, que ela protagoniza. Apenas uma pequena amostra da entrega incessante e, porque não dizer, exagerada da atriz ao trabalho, o que, no ano passado, a levou a ser internada, depois de sofrer um leve acidente vascular. Só em 2019, Deneuve filmou três longas, e ainda há para estrear “A Verdade”, do realizador japonês Hirokazu Kore-eda, com Juliette Binoche no elenco.
Musa absoluta do cinema francês desde que encarnou uma burguesa que passa as tardes se prostituindo por puro diletantismo, ou para fugir à realidade, no clássico surrealista “A Bela da Tarde” (1967), de Luis Buñuel, Deneuve conserva a altivez que o tempo não foi capaz de apagar, ainda que tenha lhe cravado marcas de expressão inerentes à idade. É o que se pode ver no drama “A Última Loucura de Claire Darling”. Ali, a septuagenária personagem decide realizar um bazar com todos os seus pertences, após acordar assombrada com uma mensagem recebida do além: ela acredita que vai morrer naquela noite.
Acontece que Claire Darling é uma colecionadora incomum. Em sua mansão, situada no interior da França, abundam relíquias originárias de vários períodos da história, fator que atrai curiosos, definitivamente animados com o preço mixo que a anfitriã cobra pelas peças. Ela parece, na verdade, querer se livrar dos objetos que, a despeito do valor monetário, carregam lembranças que Claire está disposta a esquecer. Ou, ironicamente, memórias que se apagaram de sua mente pela ação inevitável do tempo. Em seus lapsos, Claire confunde presente e passado, o que gera belas sequências, cheias de lirismo.
A trama é uma adaptação para o romance de Lynda Rutledge, publicado em 2012. A direção dá a impressão de não conseguir definir o tom, que se impõe pela história contada e a construção das personagens. Filha de Deneuve na vida real com o ator Marcello Mastroianni, Chiara Mastroianni repete o papel na tela e tem atuação correta. Johan Leysen precisa de poucos minutos para roubar a cena como um padre que agrega mais perguntas do que respostas.
Quem carrega a narrativa é mesmo Deneuve. Ao dar vida a uma burguesa severa, materialista e estoica, obrigada a enfrentar tragédias da existência, ela transforma a antipatia em compreensão. Como sempre, graças à paisagem singular da França, a fotografia é responsável por boa parte da fruição do filme. O desfecho apocalíptico, para além da beleza plástica, traz a moral da história.
Raphael Vidigal
Imagens: Festival Varilux/Divulgação.